domingo, 26 de dezembro de 2010

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Buenos Aires, Argentina, 07 de dezembro de 2010

O trem já está partindo e nós ainda estamos comprando as passagens. Rapidamente, o Leo pega os bilhetes, corre e salta para dentro do trem, já em movimento. O Nego é o segundo, e demora tanto que eu temo ficar pra trás (ele não tem culpa, é mesmo um tanto complicado vencer a altura de um metro entre o chão e a porta com o trem em movimento). Meto minhas mãos no seu traseiro e lhe empurro, para, em seguida, pular também. Que sorte termos embarcado todos!

Nós estamos indo para a casa do tio do Leo, na província de São Miguel. O Leo é nosso novo companheiro de banda. Nós o conhecemos há pouco mais de três semanas, na Plaza Del Congreso, em Buenos Aires. Eu e o Nego tocávamos e cantávamos quando ele se aproximou, ouviu, se apresentou, tocou um pouco, deixou seu contato e se foi. Desde então nós nos encontramos regularmente para fazer música – e compartilhar o mesmo sonho.

Ele, o Leo, é peruano. O fato de nos encontramos aqui, na Argentina e de maneira tão casual, me parece uma espécie de sinal divino. O meu problema é que às vezes penso que nada tem significado, exceto aquele que nós mesmos lhe atribuímos e, por isso mesmo, temo estar me enganando. Difícil seguir determinado em busca de algo quando se tem dúvidas a respeito de si mesmo. Nesses momentos eu me agarro numa frase do Bono: “eu duvido de mim a todo instante, mas nunca duvido daquilo que eu quero fazer”.

No último vagão do trem – um vagão de carga, sem bancos (um caixote, nada mais) destinado às bagagens e às bicicletas – nós tiramos o violão e o baixolão das capas e começamos a tocar algumas canções – eu no baixo, o Leo na guitarra e o Nego cantando. Além de nós três, há outras pessoas sentadas no chão (talvez para tomar conta de seus pertences). Não demora muito para que eu sinta o cheiro da “mariguana” (maconha) contaminando o ar.

Passam-se uns 10 minutos e o Leo propõe:

- Vocês têm vontade de mudar de vagão? Digo, a gente podia tocar um pouco em cada vagão e ganhar umas moedas, o que lhes parece?

- Sim, me parece muito bom! E você, Emerson? – respondo o Leo e pergunto ao Nego.

- Sim!

A verdade é que isso não me agrada nem um pouco. Tocar uma ou duas canções e depois passar o chapéu para ganhar moedas me parece algo como pedir esmolas. Na verdade, o fato de pedir, pura e simplesmente, me incomoda muito – não sei se por orgulho, ou por pensar ser auto-suficiente, ou pela criação que tive, quando minha mãe falava que “pedir é feio” (e é claro que havia um contexto onde “pedir era feio”). Assim mesmo, eu aceito tocar e pedir moedas – tenho consciência de que preciso aprender a pedir – e aceitar – ajuda.

Em cada vagão, o Leo nos apresenta como uma banda, diz que vamos tocar algumas canções para entreter a viagem das pessoas e que vamos passar a capa da guitarra para que aqueles que queiram contribuir coloquem algumas moedas – ou notas. Depois da apresentação, nós tocamos um par de canções antes de passar a capa e passar para o vagão seguinte. E assim eu ganho meu primeiro dinheiro fazendo música, nesse ano.

Enquanto tocamos, em pé no corredor do vagão, eu me perco em pensamentos, olhando pela janela e vendo a paisagem. Um dia ensolarado, um campo vasto e verdinho, com algumas árvores e algumas casas pintam o cenário que me comove. Eu não preciso de muitas coisas para ser feliz.

Por estarmos absortos em nosso trabalho, passamos da estação onde deveríamos descer. Seguimos até a última estação da linha (esse é um trem metropolitano, não um trem de longas viagens) onde podemos pegar um trem no sentido contrário para regressar à estação onde devemos descer.

Quando, finalmente, descemos na estação de São Miguel, pegamos um ônibus em direção à casa do tio do Leo. Hoje é aniversário de seu tio e o Leo nos convidou para a festa. Ele havia falado sobre nós com seu tio, e como seu tio gosta de conhecer pessoas de outras nacionalidades, disse ao Leo que nos convidasse para conhecer sua casa.

Descemos do ônibus – antigo, mas bem cuidado (não solta aquela fumaça preta como os ônibus “novos” de São Paulo – e andamos algumas quadras, por ruas de terra, até chegar em nosso destino.

A casa de Don Juan – assim se chama o tio do Leo, Juan – é uma construção inacabada, com os tijolos da parede ainda à mostra. O chão do quintal é de terra (como o da rua) e na garagem há um carro antiguíssimo, talvez dos anos 60. O interior da casa também é um tanto simples, com seu chão de terra batida e seus móveis velhos (velhos pelo uso, e não por serem antigos, o que de fato não são).

Ao passarmos pelo portão de ferro (um pouco enferrujado) logo somos apresentados á família: ao tio Juan, à tia Soledad, às primas Noelia e Joana, ao primo Emanuel e ao sobrinho Juan (como o avô), filho da Noelia.

Não demora muito e Don Juan – o tio – começa a conversar conosco sobre o Brasil. Fala um pouco de futebol, mencionando o Maracanã, o Pelé (Edson Arantes do Nascimento é o que ele diz); fala um pouco sobre a feijoada, perguntando de que é feita, e pergunta se a caipirinha nos deixa bêbados muito rápido.

Quando começa a falar do Lula, o tom da conversa – antes descontraído – fica um pouco mais sério. Ele menciona nosso presidente – Luis Inácio da Silva, ele fala – e diz que se trata de um grande homem, que está transformando o Brasil num país melhor.

Para sua surpresa, porém, eu digo que me preocupa essa fama do Lula. Me preocupa o fato das pessoas o seguirem quase que cegamente, sem muitos questionamentos. Me preocupa que tenha eleito a Dilma, uma pessoa que muito poucos conhecem, de maneira tão fácil. Ele não entende o que eu quero dizer, então eu tento explicar, com meu castellano limitado:

- O que me parece é que no Brasil, assim como em toda a América do Sul, as pessoas querem “heróis”...

- “Heroes” – me corrige, solícito, o Leo.

- ...parece que as pessoas querem “heroes” – prossigo – e não governantes, entende? Não me parece que nossos governantes devam ser heróis, e sim gente comum cujo trabalho seja melhorar a vida das pessoas, nada mais. Essa maneira como lidam Lula no Brasil, Kirchner na Argentina, Chávez na Venezuela e Morales na Bolívia, por exemplo, não pode estar certa. São quase como messias para o povo...

Estes governantes são como caudilhos que se fazem “libertadores da América”, como Bolívar, San Martín, Zapata, Che, Fidel e tantos outros. Creio que essa imagem de herói é perigosa porque heróis não existem, todos somos pessoas comuns, e são as pessoas comuns que podem fazer do mundo um lugar melhor. Essa idéia de heróis, de que somente os heróis (os grandes homens) podem fazem algo bom, nos torna (as pessoas comuns) impotentes e por isso nada fazemos para mudar o mundo... Nós todos podemos – e devemos – mudar o mundo.

- Sim, você tem razão. – diz Don Juan.

Um comentário:

  1. Nossa, muito bom! O texto tem um tom poético que gosto bastante e também seu pensamento acerca do Lula e essa relação de governantes e heróis. Parabéns pela idéia explorada de forma simples, clara e realista.

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