quinta-feira, 9 de junho de 2011

062

Buenos Aires, Argentina, 28 de janeiro de 2011.

Como de costume, ligo o computador ao acordar e vou lavar o rosto. Volto, digito a senha e vou para a cozinha preparar o meu café da manhã: pão de ontem com café coado no papel higiênico – algo perfeito pra mim e minha visão romântica do mundo.

Enquanto como, abro minha caixa de email, e logo a adrenalina sobre: recebi uma resposta do trabalho ao qual me candidatei, também por internet, no dia anterior. O texto, em espanhol argentino, diz:

“Olá Robson.

Me chamo Inês e gostaria de fazer uma entrevista com você.

Se não houver problema, podemos fazê-la hoje, na Avenida de Mayo às 14 horas.

Saudações,

Inês.”

Respondo o email no mesmo instante, com um sorriso no rosto e um enorme sentimento de gratidão. “Nunca mais eu vou duvidar que as coisas sempre acontecem exatamente da maneira que a gente quer! Basta saber o que se quer e isto nos é presenteado por Deus, pelo universo, pelo nosso inconsciente ou seja lá qual for o nome dessa força misteriosa que nos rege”, penso.

Pouco tempo depois o Nego acorda e lhe dou a notícia. Ele não reage muito bem, mas eu já esperava por isso. “Tudo bem, cada um tem o próprio caminho a percorrer e as próprias lições a aprender, eu não vou mudar o meu rumo, nem perder minha calma por isso”, penso enquanto deixo de ouvir as queixas dele.

Enquanto tomo meu banho, vou imaginando a entrevista, como vou me portar, o que vou dizer...Estou um pouco nervoso. Ainda que meus amigos me digam que meu espanhol é bom, não estou seguro que tenho nível para conseguir um trabalho – principalmente um trabalho como esse, onde terei que lidar com o público. “Ok, eu tenho a vantagem do português, e posso me virar com o inglês. Tomara que isso seja suficiente” – vou tirando a espuma do xampu e pensando.

Saio do banho vestido com uma calça jeans e, enquanto coloco uma camisa branca – uma das poucas roupas que ainda tem um bom aspecto – vou lembrando da Anni: “saí de Montevidéu desejando exatamente isso, trabalhar como a Anni, num lugar cheio de gente, com boa energia, mas nunca pensei que fosse conseguir isso assim tão rápido...”.

Convido o Nego para me acompanhar até o local da entrevista, e ele aceita. Juntos caminhamos até o ponto de ônibus, onde pegamos um que, segundo ele, nos deixa na esquina da rua onde vamos.

- E aí, como você tá? – ele pergunta.

- Bem, só um pouco nervoso. – respondo.

- Vai dar tudo certo, você vai ver. Eu só fiquei um pouco triste porque você não vai mais morar comigo, mas fica tranqüilo.

- Deus te ouça.

Passamos do ponto e temos que voltar duas quadras caminhando, mas não há problema porque saímos bem cedo de casa. Tiro o papel com o endereço do bolso e logo encontramos o lugar. Como não poderia deixar de ser, é um prédio antigo. Mas esse, diferente dos outros, está muito bem conservado, tem uma fachada linda. Talvez por estar muito próximo da casa de governo, a famosa Casa Rosada, e por estar na avenida que liga esta ao congresso da nação.

Chega o momento e estou quase tremendo de ansiedade. Me despeço do Nego e vou em direção ao prédio. Toco o interfone e me anuncio. A voz do outro lado pede para eu subir pela escada, porque o elevador – que não faz parte do projeto original do edifício – não pára no primeiro andar.

“Seja o que Deus quiser. Tenho certeza que, independente de qualquer coisa, o plano que ele tem pra mim é o plano perfeito pra minha vida. Eu quero muito esse emprego, era exatamente o que eu estava buscando, mas se não for dessa vez, tenho certeza que será da próxima”.

A porta, que está aberta, contém os dizeres: “Hostel de Mayo, seja bem-vindo”.

Uma voz vinda lá de dentro me convida a entrar. Devagar, mas decidido, entro no apartamento. Passo por um corredor com portas à direita e à esquerda, com pé direito alto (talvez uns 5 ou 6 metros) e depois de uns 4 metros chego ao ambiente que, dividido sem paredes abriga a sala e a cozinha e, ao fundo tem um mezanino onde fica o escritório. A mesma voz me diz para sentar-me à mesa, enquanto sua dona desce as escadas do mezanino e vem a meu encontro.

- Olá, como está? Sou Inês, muito prazer! – me cumprimenta uma senhora alta, gorda, de cabelos cacheados relativamente longos e com uma franjinha, e óculos escuros.

- Bem. Sou Robson, prazer – respondo.

- E então, porque você está na Argentina?

- Eu vim para estudar...

- Estudar o quê?

- Ainda não tenho certeza, talvez jornalismo.

- Que bom! Eu sou jornalista, trabalhei para o Clarín muitos anos, e já estive no Brasil também, trabalhando para a Folha de São Paulo. Posso te ajudar com isso. Você está trabalhando?

- Não, eu estou me mantendo com um dinheiro que tinha guardado, e como ele já está no fim, preciso conseguir um trabalho.

- Você já tem o documento argentino?

- Ainda não, mas já sei como fazer, e vou agendar o meu turno no departamento de imigração.

- Entendo. Você precisa correr com isso, porque eu não posso ter funcionários ilegais aqui. Há quanto tempo você está na Argentina?

- Há três meses.

- Só isso? E você já sabia espanhol?

- Não.

- Mas você fala muito bem, parabéns! Claro que ainda não está perfeito, mas te falta pouca coisa. Você não fala “portunhol” como a maioria dos brasileiros que eu conheço.

- Obrigado.

- Bom, aqui é um hostel e, como você já sabe, a diferença entre um hostel e um hotel é que no hostel as pessoas dividem os quartos, ou seja, temos 4 camas por quarto, ao passo que num hotel os quartos são privados. O seu trabalho vai ser atender os hóspedes no turno da noite. Você vai receber gente de todos os cantos do mundo, como está o seu inglês?

- Não é tão bom como o espanhol, mas eu posso me virar...

Saio da entrevista levitando. Sinto uma felicidade que quase explode meu peito. Tudo correu muito bem. Consegui o trabalho, e de quebra, um lugar lindo para morar – já que vou trabalhar e morar no local. Olho pro céu e agradeço: “muito obrigado, Anni”.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

061

Buenos Aires, Argentina, 22 de janeiro de 2011.

Enquanto troco mensagens pelo MSN com o Leo, vou repassando mentalmente tudo que lhe quero dizer. Pra mim é algo muito difícil falar pra ele que tô saindo com a Flori. Na verdade, eu não pude nem dizer pra ele quando pintou um clima entre a gente pela internet, quando eu ainda tava em Montevidéu. Difícil dizer pra um amigo que a gente tá saindo com a moça que ele também queria.

Penso: “che, preciso te falar uma coisa e acho que você vai ficar bravo comigo – você tem o seu direito. Vou te falar de cara, sem rodeios: estou saindo com a Flori. Eu sei que, quando a gente a conheceu no hostel em Montevidéu, você falou que tava afim dela e tudo mais. Pois quando você disse isso, eu tentei ficar distante dela, sem dar muito papo, até sendo grosseiro, pra deixar o caminho aberto pra você. Pode perguntar pro Emerson, ele vai te dizer. Quando a gente voltou pra Buenos Aires e começamos a sair com ela, eu quase nem falava com ela. Nem no Facebook eu a tinha adicionado nem nada. Depois, quando fui pra Montevidéu pela segunda vez, com o Emerson, eu adicionei ela no Facebook porque achei que não tinha nada a ver. O problema é que a gente começou a bater papo e a conversa fluiu, sei lá. Não sei exatamente como a gente entrou no assunto, mas ela me falou que desde a primeira conversa se interessou por mim. Poxa, a Flori é bonita, e muito legal. Não quero entrar nesses detalhes. Quando você me falou que tinha falado com ela e que não rolou nada entre vocês, eu senti que não precisava mais me segurar – rolou uma química entre a gente, não há culpa nem culpados... Eu estou em Buenos Aires agora, de novo, porque ela me deu uma força. Nessas conversas que a gente teve pela internet, ela me ajudou a ver algumas coisas e tomar algumas decisões – eu vou procurar uma faculdade de jornalismo aqui, porque eu sempre gostei de escrever e sempre me dei bem com isso. Vou procurar um emprego e me instalar direito por aqui. Eu espero que você me entenda, porque eu não fiz nada por mal, simplesmente aconteceu. Quero que você saiba que ela é especial pra mim, não é só uma garota com quem vou sair uma ou duas vezes. Pode parecer esquisito pra você, porque você sabe da Táta e da Anni, sei lá. Eu também não posso explicar. Na segunda vez que saí com a Flori, por exemplo, aconteceu uma coisa que me deixaram as coisas bem claras: ela levou uma amiga dela junto, a melhor amiga, pra eu conhecer. A fulana é estudante de psicologia também, e eu senti que ela tava me analisando o tempo todo – elas não aceitam que eu não tenha te falado nada até agora, sobre estar saindo com a Flori. Eu sei que isso não foi correto, mas é uma coisa muito difícil de falar, acho que você entende. Só sei que eu fiquei tenso aquela noite, é muito difícil ouvir sermão de uma pessoa que pensa que te conhece, que pode te analisar assim, com meia hora de conversa. Fiquei de saco cheio, e a Flori notou. A Flori me perguntou o que eu tinha, e eu falei: meu, dá um tempo. Se eu ainda não falei com o Leo, é porque a oportunidade ainda não surgiu, sei lá. Não quero magoá-lo. Você não precisa me pressionar tanto. Poxa, eu tenho passado coisas complicadas aqui, desde que cheguei de Montevidéu anteontem, e você sabe. Eu ando super estressado, não tenho muita cabeça pra falar com o Leo. Dá um desconto. Nessa hora ela meio que se tocou, me disse que não notou que eu tava tão estressado porque eu tenho “estrutura”. Perguntei pra ela o que ela quis dizer com isso, mas ela não entendi muito bem o que ela respondeu, então lhe falei: não sei porque te parece que eu tenho estrutura, mas nesse momento, eu não tenho nada na Argentina nem tampouco no Brasil. Nessa hora eu comecei a ficar emocionado – é uma merda ficar emocionado perto de mulher, não gosto de ser chorão. Falei pra ela que a única estrutura que eu tinha na Argentina era o apoio dela, que ela me falou que vou ter até quando queira. Vê porque ela é importante pra mim? Bom, é isso. Espero que você possa me entender, porque eu não fiz nada de propósito, nunca quis te sacanear nem nada parecido. Que me diz de tudo isso?”

Começo a falar com ele sobre o assunto:

- Che, preciso te falar uma coisa e acho que você vai ficar bravo comigo – você tem o seu direito. Vou te falar de cara, sem rodeios: estou saindo com a Flori.

- Isso não é falar de cara, é falar por MSN. – ele responde.

As coisas não saem exatamente como eu queria, mas saem exatamente como eu pensei – ele ficou puto. Sequer me deixa dar uma justificativa. Fala que precisa tomar café da manhã e desconecta. Não digo que me sinto feliz, mas sei lá. Acho que agora é melhor dar espaço pra ele. Quando ele sentir-se pronto para falar sobre o tema, vai me procurar. Vou esperar ele me procurar. Melhor.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

060

São Paulo, Brasil, 2003.

“Merda, o que eu vou fazer? Não tenho dinheiro nem pra pagar o ônibus. Ainda que isso não tenha a mínima importância pra Ná, eu morro de vergonha.” – pensava, num misto de desespero, impotência e tristeza.

O dia estava meio nublado, era outono (ou inverno, sei lá) em São Paulo e, ainda que o frio não fosse tão rigoroso como pode ser em outras partes do mundo, pode-se dizer que estava muito frio para os padrões paulistanos. Mesmo dentro do apartamento, com as janelas fechadas, uma blusa e uma calça se faziam necessários.

Eu já estava pronto pra dizer a Ná que tava duro – não adiantaria pedir dinheiro pra mãe ou pro pai – quando de repente, num passe de mágica, tudo se resolveu. Ou mais ou menos isso.

- Toma Robson! – disse meu irmão.

As notas de vinte reais eram novidade naquela época e, por isso mesmo, eu ainda não tinha manuseado muitas como aquela que meu irmão acabara de entregar-me, dobrada de maneira a assumir ¼ de seu tamanho normal.

- Ué, por que você tá me dando isso? – perguntei, surpreso.

- Por nada, presente! – falou o Má, com um sorriso no rosto.

“Uau! Parece que ele adivinhou que eu tava completamente duro e precisando muito de dinheiro pra sair com a Ná!” – pensei, enfiando a nota (ainda dobrada) no bolso.

- Valeu! – agradeci.

Receber aquele dinheiro foi um verdadeiro alívio. Eu não podia cancelar aquela saída com a Ná, e não por vergonha de dizer que tava sem grana. A gente tava indo fazer a prova do ENEM e não podíamos perdê-la por nada no mundo. Feliz da vida, eu falei pra Ná:

- Não precisa levar o seu dinheiro, eu tenho suficiente pra nós dois!

Saímos.

De mãos dadas descemos as escadas do prédio, cruzamos praticamente todo o condomínio onde eu morava, atravessamos a Avenida do Arvoreiro, passamos pelo posto Esso e chegamos no ponto de ônibus, onde esperamos alguns minutos até embarcarmos num coletivo da linha “Metrô Jabaquara – Pq. Residencial Cocaia”.

A Ná passou pela catraca primeiro, enquanto eu entregava a nota de vinte reais, ainda dobrada, para o cobrador. Esperei o troco antes de também passar pela catraca, mas o que recebi não foi exatamente o que esperava.

- Você tá me zuando? Tá querendo me enganar? – esbravejou o cobrador. Não entendi nada.

- Por quê? O que houve? – perguntei, espantado.

- Por que o que, rapá? Tá achando que eu sô moleque?

- Não tô entendendo – disse, com uma cara de surpresa que parecia enfurecer ainda mais o cobrador, que pensava ser dissimulação minha.

- Essa merda é falsa porra! Você achou que eu ia cair nessa?

Foi então que eu vi a nota desdobrada na mão do cobrador. Nem sequer era uma nota falsa – era um desses “flyers” de ação promocional de financeiras, onde uma das faces tem impressa a imagem de uma nota e, na outra face, as condições de empréstimo de dinheiro. Obviamente a nota de vinte reais foi escolhida pela financeira por ser novidade. Eu fiquei sem palavras, e sem chão. Por um instante – talvez mais breve que um segundo – as coisas se moviam em câmera lenta, sem sons, como nesses filmes de ação que imitam aquela célebre cena de “Matrix”.

- Cara, eu não sabia, juro! – falei, quando voltou a fala.

- Cê acha que eu vou cair nessa? Vou mandar o motorista tocar pra delegacia!

Nesse meio tempo, a Ná conseguiu com alguém (um conhecido de algum lugar que por coincidência tava no mesmo ônibus que a gente) um vale-transporte (naquela época ainda eram de papel, em SP) e pagou a dela, já que ela havia girado a catraca.

- Por favor, deixa eu passar por baixo – pedi, com toda a cara-de-pau do mundo. Sim, eu tava desesperado.

Talvez o fato de receber a passagem da Ná tenha acalmado um pouco a ira do cobrador e, como por milagre, ele deixou-me passar por baixo da catraca e seguir viagem. Fomos para a parte de trás do coletivo, perto da porta, onde botei a cabeça no colo da Ná, ainda abalado. Enquanto ela dizia pra eu me acalmar, eu podia ouvir o pessoal falando: “a mocinha não teve culpa de nada! A culpa é do rapaz, ele que é um safado!”.

Descemos do ônibus na parada perto da Universidade Ibirapuera, onde fizemos a prova. Tivemos que voltar andando para o apartamento – pelo menos a gente gostava de caminhar e conversar. Quando chegamos em casa, contamos aos risos tudo que aconteceu. Alguns meses depois, recebi uma carta com as notas do exame: 73 na parte de questões objetivas e 100 na redação.

terça-feira, 5 de abril de 2011

059

Buenos Aires, Argentina, 20 de janeiro de 2010.

Acordo cansado.

“Espero que a noite do Nego tenha sido melhor que a minha” – penso.

Vou até o quarto do Nego, pego as coisas de banho que ficaram na mochila dele e vou ao banheiro. Tomo uma ducha de água gelada rapidamente, volto pro quarto e me visto. Pego meu computador e vou pra sala de estar do hostel que, para minha surpresa, é muito limpa, agradável, completamente diferente do banheiro e dos quartos. Este apartamento é como a maioria dos apartamentos que eu já visitei em Buenos Aires: antigo, com pé direito alto e janelas enormes, recheado de móveis feitos de madeira robusta, à moda antiga.

- Você sabe qual a rede wi-fi daqui? – pergunto ao Nego.

- Sim, tem o mesmo nome do hostel, e não tem senha. – ele responde.

Conecto-me à rede e começo a buscar um lugar pra gente ficar, em definitivo. No momento que visito a página do Google, me recordo que tenho um anúncio interessante nos “meus favoritos”. Acesso tal pagina e anoto os dados do local numa folha de caderno.

- Nego, a gente não pode demorar muito aqui, nossa diária venceu meio-dia, e agora faltam quinze para a uma. – diz o Nego.

- Tá, eu já consegui alguns lugares pra gente visitar. – respondo.

Pegamos nossas bagagens e saímos. Vamos ao Locutório onde eu ligo para o primeiro anúncio, aquele que estava nos “meus favoritos”. O dono da pensão é muito simpático, e marca uma visita pra gente em meia hora. De metrô, nós vamos ao local que fica no bairro de “Constitución” – um dos lugares mais feios da cidade.

- Barra pesada esse lugar né? – comento com Nego.

- Sim... – ele fala.

Chegamos no local e, “novidade”, o prédio é antigo. Por fora, é feio. Tem uma coloração “cinza-cimento-cru” que quase esconde a sujeira acumulada pelos anos. O portão de ferro também está maltratado, enferrujado. Toco a campainha e falo com o dono da pensão, que logo vem abrir o portão pra nós entrarmos.

O hall de entrada mostra que o prédio está “esquecido” também por dentro. Ainda que as janelas sejam grandes e numerosas, a luz natural não é suficiente para iluminar muito bem o lugar – talvez pelo excesso de sujeira em simbiose com o vidro. Não há elevador, então vamos vencendo lentamente os degraus que separam o térreo do terceiro andar, onde fica a pensão.

“Parece que também não foi dessa vez que a gente encontrou nosso lugar” – penso, num misto de decepção e preocupação.

Ao entrar no (enorme) apartamento, porém, minha impressão do local muda da água pro vinho. É tudo muito limpo, organizado, agradável. O Sr. Henrique nos mostra o quarto onde há duas camas vagas, a cozinha e os banheiros. Fico satisfeito. Troco poucas palavras com o Nego, baixinho, e vejo que ele também aprova o local. Fechamos negócio.

***

Já é noite. Antes de dormir, eu vejo meus e-mails e mensagens do Facebook quando recebo uma notícia que me pega de surpresa e me deixa incrédulo.

- Nego – digo – acabei de receber uma mensagem da Giuli, a peruana que a gente conheceu em Montevidéu, lembra?

- Sim, lembro! O que houve? – ele fala.

- A Anni morreu.

***

Sem conseguir dormir, eu entro no Facebook da Anni e vejo algumas fotos dela. Ainda não consegui digerir muito bem a notícia da morte. Foi muito de repente. Ela era muito nova e, ao que parece, tinha saúde muito boa. “Como teria sido, se a gente não tivesse parado de se ver? Como teria sido se eu ainda estivesse em Montevidéu? Como será que eu reagiria a tudo isso?” – penso.

Olhando pra’queles olhos azuis quase tão intensos na foto como eram ao vivo, é impossível não lembrar das conversas que a gente tinha naquelas noites de vento em Montevidéu. “Meu sonho é aprender a amar as pessoas incondicionalmente” disse ela, certa vez. Ao lembrar dessas palavras, lágrimas brotam dos meus olhos e começam a escorrer pelo meu rosto, enquanto eu acaricio o dela, na tela do computador. “Será que eu pude ajudá-la com isso?” – penso.

Nesse momento, uma paz me preenche. Um abraço me conforta e me aquece – um abraço que não existe senão em meu pensamento. De alguma forma, posso sentir que ela está bem. Como naqueles dias raros, ensolarados e chuvosos, meu sorriso e minhas lágrimas me dizem que sim, há um tesouro no final do arco-íris.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

058

São Paulo, Brasil, segundo semestre de 2008.

Saí do banho só de toalha e fui para o quarto. Quando vi a Ná deitada, toda empacotada entre lençóis e edredons, um pensamento muito sacana me veio na cabeça. Tirei a toalha e fiquei completamente nu. Com uma cara muito sapeca – que ela conhecia muito bem, e sabia o que viria a seguir – eu comecei a correr pela casa, saí pela porta da cozinha e fui pelado pelo quintal, com uma passada curta e desengonçada imitando o caminhar de um bebê que apenas descobre os primeiros passos. Ela veio em meu encalço, me agarrou e me levou de volta pra dentro puxando minha orelha. Eu amava essa mulher.

No quarto, depois de muitas risadas da brincadeira, e depois de muito carinho pelo mesmo motivo, me vesti para ir jogar futebol.

- Quantos gols você quer? – perguntei, já no portão de casa.

- Hum... Cinco! – respondeu a Ná, com um sorriso algo entre serelepe e complacente, talvez imaginando que marcar mais fosse impossível pra mim.

- Só cinco? Tá bom...

Dei-lhe um beijo e fui andando até a quadra, que ficava a mais ou menos quinze ou vinte minutos de caminhada de casa. De noite, com aquela brisa agradável, o trajeto era facilmente percorrido. Fui pensando pelo caminho, muito entusiasmado, na partida de futebol. Eu amo futebol.

Na quadra, cumprimentei o pessoal que, como eu, sempre chegava uns 10 minutos antes – talvez por não poder conter a excitação e ficar parado em casa, assistindo a novela das oito enquanto esperava a hora “certa” de sair. Logo procurei o Ivan – responsável pelo aluguel da quadra – e lhe paguei minha parcela da mensalidade.

Como já estava com roupa de jogo, sequer precisei trocar o tênis. Assim que começou o nosso horário eu entrei na quadra e comecei a chutar bola para o goleiro, alongar as pernas e dar uma corridinha pra me aquecer – hábitos que ainda mantenho, desde a época em que treinava no time da Eletropaulo.

- Toma um colete verde – falou o Ivan, que também era responsável por dividir as equipes.

Como a maioria dos “jogadores”, o Ivan era um senhor de meia-idade, acho que tinha algo entre 45 e 55. Ainda assim, parecia muito bem preparado fisicamente – acho que era professor de academia, ou professor de educação física, algo assim.

O jogo começou duríssimo como sempre. Os times não estavam lá muito equilibrados (o Ivan sempre montava uma equipe forte pra ele próprio), mas assim mesmo eu corria e me divertia como uma criança. Vencia os longos metros de uma trave à outra do campo de grama sintética tipo “society” sem pestanejar muito.

“Como é bom poder correr o jogo todo, participar, ter fôlego até o final. Foi um regime muito duro, admito, mas depois de baixar dos 97 aos 85, cheguei à conclusão de que, seu eu pude, qualquer um pode – basta querer. Aliás, acho que o único impedimento é justamente esse, o querer. As pessoas levam uma vida infeliz, com baixa auto-estima também causada pelo excesso de peso e (talvez) nem se dão conta disso. Na verdade, o sobrepeso é conseqüência, e não causa da baixa auto-estima, mas ainda sim vale a pena trabalhar nas folhas até descobrir a raiz do problema.” – pensei, enquanto esperava minha vez de entrar em quadra novamente.

- Toca a bola! – gritou o Wilson, também conhecido como “Nilson, o pasteleiro”.

Não toquei, dei mais um drible.

- Aqui, eu tô sozinho! – ele falou de novo.

Não toquei. Mais um drible.

- Toca, Shytarinha! – essa é a maneira como me chamam os que conhecem meu pai, cujo apelido é Shytara.

Não toquei, chutei para o gol.

- Boa Shytarinha, é isso aí!

“Queria ver se o elogio viria, se a bola não tivesse entrado... Ainda me faltam três gols pra cumprir a promessa. Acho que hoje vai dar!” – pensei.

Foi quando notei o Ivan caído ao lado da quadra, sofrendo de algo como um ataque epilético. Completamente sem saber o que fazer, eu comentei com um dos rapazes que estavam de fora:

- Ei, o Ivan tá passando mal...

A sucessão dos fatos, a partir daí, foram meio confusos. Todos se juntaram ao redor do corpo caído inerte, até que os mais experimentados começaram os primeiros-socorros. Botaram os dedos dentro da boca dele para que a língua não enrolasse. Logo depois, ao notarem que ele não respirava, fizeram uma respiração boca-a-boca. Sem resultados, veio a massagem cardíaca. Nada. Alguns tentavam, em vão, chamar uma ambulância que, por algum motivo desconhecido, nunca chegou na quadra. Com algumas mesas de bar, dessas de plástico, improvisaram uma maca onde colocaram o Ivan e o levaram para a pick-up de um dos rapazes, ao mesmo tempo que gritavam e o incentivavam a resistir. Quando passaram por mim, porém, eu vi que aqueles olhos já estavam sem vida.

Voltei pra casa caminhando, sozinho.

Aquela foi a experiência mais próxima e mais real que tive com a morte, até então.

Aquilo não me perturbou como era de se esperar.

Talvez por não ser alguém próximo a mim.

Duvido.

A morte faz parte da vida.

A vida precisa da morte.

Rezei.

quinta-feira, 31 de março de 2011

057

Buenos Aires, Argentina, 19 de janeiro de 2011.

O sol vai revelando, por detrás das nuvens, um dia cinza e chuvoso. Estamos sentados perto de uma guarita, à margem do Río de La Plata, em Puerto Madero. As pessoas começam a fazer cooper, passear com seus cachorros e ir ao trabalho. Nós, o Nego e eu, passamos a noite acordados.

- ... e daí chegou um guarda e me disse que eu não poderia ficar ali, que eles estavam fechando o terminal da Buquebus. – fala o Nego.

- Nossa! E aí, o que você fez? – pergunto.

- Eu peguei todas as malas me sentei ali do outro lado do rio.

Nossas malas estão realmente pesadas. Não consigo imaginar como o Nego pôde carregá-las sozinho, junto com o violão e com o cajón (instrumento de percussão de origem peruana).

- E porque você veio pra esse lado?

- Eu tava sentado naquele banco, vê? – me pergunta o Nego apontando um lugar na outra margem.

- Sim...

- Então, eu tava sentado lá quando chegou um cara mal encarado me pedindo alguma coisa. Eu disse que não tinha, então ele resolveu me assaltar! Apareceram mais uns caras e juntou um monte ao meu redor...

- Caramba! E o que eles levaram? – pergunto olhando ao redor procurando a Guria (como se chama meu violão).

- Eles não levaram nada! Eu comecei a gritar e pedir ajuda pra uns guardinhas que, depois de afugentar os bandidos, me falaram pra ficar sentado aqui perto dessa guarita...

- A tá, entendo... E você carregou tudo sozinho de novo?!

- Pois é... E como foi lá, com a Flori?

- Foi legal...

Falo com detalhes sobre a noite que passei com Flori, também à margem do rio, até que nos levantamos e vamos para a pensão onde vive Leo. O plano é ficar na casa dele por um ou dois dias, até encontrar um lugar decente pra ficar. A gente não pode voltar para o mesmo apartamento de onde estávamos antes, pois o quarto onde vivíamos já está alugado.

Chegamos ao prédio onde o Leo vive e resolvemos esperar um pouco para chamá-lo, pois ainda é cedo, sete e meia da manhã. Sentados na escada do prédio, acariciando um gato que sabe Deus de onde veio, a gente conversa:

- ...então, assim que a gente conseguir um lugar pra ficar, eu vou naquele bar que a Regina nos indicou pra pedir emprego – fala o Nego.

- É uma boa. Tem um site de empregos que a Guria me indicou, a gente pode procurar alguma coisa nele também.

Passa algum tempo e o zelador do prédio pede pra gente sair, pois ele vai lavar a escada. A gente pega as coisas e se acomoda na frente do edifício.

Começa a chover.

- Eu vou lá acordar o Leo, a gente não pode ficar aqui tomando chuva – fala o Nego.

- Tá, eu fico aqui com as coisas – falo.

O Nego sobe e, alguns minutos depois, volta pra me ajudar a levar as coisas pro quarto de pensão onde vive o Leo.

- O teu irmão peruano tá com uma cara feia – ele fala.

- Também né? Ninguém merece ser acordado a essa hora da manhã...

Subimos com as coisas para o quarto do Leo que não nos recebe muito bem. Acho que, como eu, ele também não é muito sociável quando acaba de acordar. De cara nos fala que não podemos ficar com ele porque a dona da pensão não aceita visitas, e que teremos que pagar para ficar ali.

- Tudo bem, não tem problema. A gente pode deixar as coisas aqui até conseguir um lugar pra ficar? Acho que a gente acha algo hoje mesmo... – pergunto.

- Sim... – responde o Leo, com poucas palavras.

Pegamos uma mochila pequena com algumas coisas, como o computador do Nego, e saímos.

- A gente pode ir a Biblioteca del Congreso e usar a internet de lá – fala o Nego.

- Então vamos...

A chuva está tão gelada que sinto que vai congelar meus ossos. A gente vai andando de toldo em toldo, tentando não se molhar muito, até que a chuva aperta de tal maneira que somos obrigados a ficar numa banca de jornal, parados.

- Meu, a gente é foda! Tava tudo tão bom aqui, por que a gente foi inventar esse lance de ir pro Uruguai? – pergunto, mesmo sabendo da importância do que vivemos lá.

- Pois é... – fala o Nego.

Passa um tempo e fica claro que a chuva não vai passar tão cedo. A gente resolve vencer as duas quadras que nos separam da biblioteca correndo sob a chuva gelada.

- Não acredito – fala o Nego.

- Que foi? – pergunto.

- A biblioteca tá fechada.

Algo me diz que vamos ter um dia daqueles. Como estou cansado – afinal não dormimos a noite toda – me sento num pequeno degrau à frente de um comércio que ainda está fechado.

- Eu vou dar uma volta por aqui pra olhar alguns hosteis (albergues) e perguntar quanto eles cobram por mês, você pode ficar aqui – fala o Nego.

Eu encosto meus braços em meus joelhos, minha cabeça em meus braços, e durmo.

***

Acordo e não vejo o Nego. Não sei quanto tempo passou, mas não devo ter cochilado mais que vinte ou trinta minutos. Ainda chove. Levanto-me para esticar o corpo e espero um pouco. Como o Nego não aparece, resolvo dar uma volta pelos arredores da Plaza del Congreso, onde está a Biblioteca del Congreso e o próprio congresso argentino, que dá nome aos dois anteriores.

Entro num sebo e dou uma longa olhada nos livros. Ainda que esteja morrendo de vontade, não compro nada e saio. Vou a uma Lan House e começo a buscar, pela internet, algum lugar para morar.

- Como você sabia que eu tava aqui? – pergunto ao Nego, que chega e senta ao meu lado.

- Quando eu cheguei e não vi você, tinha certeza que tinha se enfiado em alguma Lan House, com esse vício por internet, e como essa é a única que tem por aqui... – ele responde.

- Eu tô pegando alguns telefones de alguns lugares pra gente ficar...

- Legal!

Alguns minutos depois saímos com os telefones e vamos a um Locutório (local onde se pode fazer ligações telefônicas, parecido com uma Lan House) para ligar nos lugares que selecionei e tentar marcar uma visita.

Algumas chamadas depois, conseguimos apenas dois lugares onde provavelmente podemos pagar. Pegamos um Ônibus e vamos conhecer o primeiro, que fica longe do centro, uns trinta minutos de viagem. E a chuva não dá trégua.

Chegamos na pensão, e o lugar parece muito bom. É uma pensão para estudantes, montada recentemente, extremamente limpa e organizada. Conversamos com o dono que parece boa pessoa. Depois de muita negociação não fechamos negócio porque não sabemos se o dinheiro que pedi a minha mãe já está disponível na conta. Combinamos, então, que vamos ao banco e voltaremos à pensão com o dinheiro para pagá-lo e pegar as chaves.

- Eu gostei muito dessa! – falo.

- Eu também! Você viu a janela? E a gente vai ter TV e geladeira só pra gente! – disse o Nego, tão empolgado quanto eu.

- Tomara que dê tudo certo...

- Tomara!

Pegamos um ônibus e vamos para o banco. No banco, ficamos radiantes ao notar que o dinheiro está na conta. Nesta agência do Banco do Brasil, porém, não podemos sacar o dinheiro. Voltamos para a rua e entramos em um banco qualquer onde podemos sacar via rede “Link” (semelhante à rede 24 horas, do Brasil).

Com dinheiro em mãos, vamos à pensão onde vive o Leo e pegamos as duas mochilas e o violão. Deixamos algumas coisas lá para pegar no dia seguinte, mas assim mesmo, nossas coisas estão bem pesadas – talvez por estarmos muito cansados, depois de uma noite sem dormir.

“Esse está sendo um dia bem longo” – penso.

Nós vamos a um Locutório, eu ligo para a pensão onde deixamos acertado que voltaríamos com o dinheiro e aviso que estamos indo para fechar negócio. Pegamos um ônibus. Chegamos. Tocamos a campainha e nada. Outra vez. Outra mais. Nada.

- Ai meu Deus, eu não acredito! Isso é muita sacanagem! O cara sabia que a gente tava vindo pra cá... – falo.

- Será que ele demora? – me pergunta o Nego.

- Por que você me pergunta essas coisas? Como eu vou saber? – respondo, mal criado. Já estou estressado e quase perdendo o controle.

- Tá, não começa! – diz o Nego.

- Vou procurar um Locutório pra ligar de novo!

Levanto e vou andando pelo bairro à procura de um lugar para telefonar. Encontro. Entro. Ligo. Nada. Outra vez. Nada. Outra mais. Nada. Tento no celular. Nada.

- Sem chance, não consegui ligar pra ele – falo, ao chegar na porta da pensão.

- Nem no celular? – pergunta o Nego.

- Não...

Esperamos um tempo, sentados, até que minha paciência acaba. Levanto-me e falo que não vou mais ficar naquela pensão, que vou procurar outra. De acordo, o Nego levanta e vem comigo. Pelo menos a chuva deu uma trégua.

Voltamos para a região central de Buenos Aires e ligamos para outra pensão. Falo com a encarregada e nos dirigimos ao local para conhecê-lo. Triste. Mesmo que não tenhamos onde ficar, nem precisamos conversar para saber o que o outro está pensando. O lugar é péssimo, muito sujo e mal cuidado. Uma rápida troca de olhares com o Nego basta para eu dizer pra senhora que não vamos ficar, que vamos ver outro local e decidir depois.

- Eu não vou me enfiar num lugar assim de novo! Não depois do que a gente passou em Montevidéu! – falo pro Nego.

- Lógico que não! Nunca mais! – ele concorda.

Seguimos andando sem rumo, sem saber qual o próximo passo. “Esse dia tá sendo mesmo muito longo!” penso.

- Vamos ligar pr’aquele cara de novo? – pergunta o Nego.

- Nem a pau! Eu não vou mais ficar naquele lugar – falo, estressado.

- Não custa ligar outra vez....

- Eu tenho certeza que esse cara não quer a gente lá, senão ele nos teria atendido...

- Mas a gente pode ligar assim mesmo, pra saber...

- Se você quiser, você liga. Eu não vou ligar.

Entramos num Locutório e o Nego liga. Nada.

- Não falei?! – digo, de forma bem mal criada.

Seguimos andando pela Avenida Rivadavia, quando passamos em frente à um hostel, na Praça do Congresso.

- Pra mim já chega! Eu vou passar a noite aqui nesse hostel, e amanhã a gente continua procurando algum lugar. Já tá quase de noite, e eu tô muito cansado. Se você quiser, pode vir comigo...

O Nego já sabe que, quando eu estou nesse nível de estresse, não adianta falar comigo. Ele me acompanha. No hostel, pra minha surpresa, uma moça pula no pescoço do Nego e lhe dá um enorme abraço, muito carinhoso.

- Quem era essa? – pergunto.

- A Marli, uma moça que eu conheci em Montevidéu.

- Qual?

- Aquela carioca que tá viajando de mochileira...

- Não acredito! Que coincidência! Então cê vai pegar mulé aqui?! Viu como foi bom entrar nesse hostel? Você ainda tem alguma dúvida de que tudo vai dar certo?

segunda-feira, 28 de março de 2011

056

Algum ponto entre Montevidéu e Colonia del Sacramento, Uruguai, 18 de janeiro de 2011

Sentado no assento da janela, observando toda aquela paisagem pela primeira vez (por estar acordado neste trajeto também pela primeira vez), eu vou pensando nos acontecimentos dos últimos dias. Um ciclo está encerrando – um ciclo que, apesar de bastante longo, chega ao fim.

“Não é preciso viver mal porque muitas pessoas vivem mal. Não é preciso viver triste porque muitas pessoas vivem triste. A Ná me disse isso uma vez, repetindo as palavras do Masaharu Taniguchi (fundador da Seicho-No-Ie). Eu mesmo li palavras semelhantes nos “Segredos da Mente Milionária” de T.Harv Eker. Mas, como tudo em minha vida, eu tive que viver na própria pele uma situação de extrema pobreza (e que não foi, nem de longe, a mais extrema possível) para entender o significado dessas palavras. Não é enfiado num buraco em Montevidéu que eu vou poder fazer algo decente da minha vida...” – penso.

Do lado de fora da janela, os campos verdinhos vão passando sem passar – nada muda, e parece não ter fim. No meu fone de ouvido, a canção “Al otro lado del Río” de Jorge Drexler vai repetindo pela enésima vez – uma trilha sonora perfeita para o momento, sem dúvida.

“Interessante como as pessoas nunca aparecem por acaso. Mesmo numa simples viagem como essa primeira que fizemos ao Uruguai. Nela conheci a Anni e, com certeza, fomos muito importantes na vida um do outro, apesar do pouco tempo que tivemos. Espero que a tenha ajudado, de alguma forma, a encontrar ao menos um pouco do amor incondicional que ela busca nessa vida. De minha parte, sou muito grato à ela por me ensinar com sua experiência de vida – mesmo os pequenos detalhes são importantíssimos! Nunca tinha pensado em trabalhar num Hostel, e isso parece perfeito nesse momento. Vou procurar emprego num Hostel quando chegar.

A Flori também, com algumas conversas por MSN, me ajudou bastante nessas duas semanas (tristes) de Uruguai, nesta segunda viagem. Sobretudo pelo apoio e pelas opiniões precisas. Ela acha que, se eu sinto que devo estudar, que o faça assim que voltar; que eu devo escolher uma carreira que me deixe feliz, e não uma que me dê dinheiro, uma vez que não é o acúmulo de dinheiro que vai me fazer feliz. E o mais importante: quando lhe perguntei se ela estava ciente que eu vou recomeçar minha vida do zero em Buenos Aires, sem emprego, sem estudo e sem dinheiro, ela disse que sim, e que assim mesmo queria estar comigo nesse processo. Ela é uma moça encantadora.”

Do meu lado, pra minha surpresa, o Nego não está dormindo. Talvez ele também tenha muitas coisas na cabeça, depois dessa curta temporada de pobreza, tristeza e incerteza – palavras que rimam mas que não montam uma boa poesia...

“Difícil vai ser quando a Táta voltar a Buenos Aires também. Isso é meio confuso. Anni, Flori. Táta. Ela não sai da minha cabeça mesmo com todos esses acontecimentos. Talvez eu não seja assim tão capaz de controlar meus sentimentos, mesmo buscando outros estímulos. Essa é uma busca interessante – domar-se. Eu acho que esse é um passo importante para o ser humano e, a julgar pela dificuldade, o prêmio por essa conquista deve ser incrível.”

Nosso ônibus finalmente chega ao terminal. Pegamos nossas coisas e vamos para a área de compra de passagens e embarque da Buquebus – empresa que faz a travessia de barco entre Colonia del Sacramento e Buenos Aires. Por sorte, conseguimos a passagem para duas horas.

Fazemos o check-in, passamos pela imigração e sentamos na sala de espera. A vista do sol se pondo num rio alaranjado como o céu é perfeita para o momento. Acima de tudo, Deus é um artista.

quarta-feira, 23 de março de 2011

055

São Paulo, Brasil, 27 de março de 2000.

Saímos da sala de aula em fila indiana – isso era meio esquisito, afinal já estávamos na oitava série, mas essa era a única maneira de manter nossa turma sob controle.

Atravessamos o corredor do prédio principal da Escola Professor Almeida Júnior, passamos pelo pátio externo e chegamos na Sala de Leitura, onde a professora Noemi ( de português) nos entregou a também professora Irene (responsável pela Sala de Leitura).

Era parte do nosso programa de português ir à Sala de Leitura regularmente, onde escolhíamos qualquer coisa de nosso interesse para ler. Eu sempre pegava algo da seção de romances aventurosos infanto-juvenis. Naquele dia, porém, a atividade era outra:

- Pessoal, presta atenção aqui! – falou a professora Irene.

Rapidamente o fuzuê que o pessoal fazia, falando alto e pentelhando uns aos outros se extinguiu como a chama de uma vela que recebe uma lufada de ar. Essa era a única professora que tinha esse efeito na turma – e não era pela simpatia; na verdade, eu acho que ela deixava a simpatia em casa.

- Hoje vocês vão fazer uma redação. O tema é “o furo da minha mão”. Vocês têm que escrever uma história com esse assunto, e o título tem que ser igual ao que eu falei. Alguma dúvida?

Todos nós tínhamos muitas dúvidas, mas é óbvio que a professora nunca soube delas – quem se atreveria a perguntar alguma coisa?

- Essa atividade é para entregar, então vocês devem tirar uma folha do caderno e, por favor, não me entreguem nada com aqueles cabelinhos de papel pendurados na lateral da folha – vou tirar nota por isso! – finalizou a professora.

Como ordenado, tirei uma folha do meu caderno e escrevi o seguinte texto:

O furo da minha mão

O furo da minha mão é algo bem estranho, mas eu já me acostumei com ele. Ele, o furo, já está aí a bastante tempo, eu nem me lembro direito como ele surgiu. Foi um dia que eu acordei e fui lavar o rosto, como qualquer pessoa faz. O problema é que eu pegava a água com a mão e ela não chegava até o rosto. Aí eu fiquei “zoiando” e percebi ele lá, do tamanho de uma moeda. Fui correndo até minha mãe. A “véia” tomou um susto coitada, e eu achando graça em tudo, nos meus cinco anos de idade.

Mamãe e eu fomos ao médico, que não soube explicar o ocorrido.

O furo da minha mão tem vantagens e desvantagens. Com ele eu posso “bizoiá” onde o povo se esconde, quando estamos brincando. Mas não posso segurar moedas, porque cai tudo.

Mas o problema maior foi a escola. Sempre fui alvo de brincadeiras de mau gosto, mas, Aline, minha melhor amiga sempre me defendia. Aliás, já que tocamos no assunto, Aline sempre foi uma magricela chatinha, com os cabelos longos e os olhos de jabuticaba. Sempre eu acho que não é a palavra certa, quase sempre sim. Quase sempre porque hoje, não sei como aconteceu, mas ela ficou bonita. Acho que estou apaixonado. Aí você me pergunta: o que ela tem a ver com o furo da minha mão? Simples! Graças a ele conheci Aline.

Por isso, sou o “furado” mais feliz do mundo. Qualquer dia, se o furo ajudar, me declaro a ela, mas tem tempo, muito tempo.

Você pode não ter furo, mas com certeza tem o pé grande, a cabeça enorme, um narigão, etc. Mas se souber usá-lo, poderá ganhar muito, pois são esses “defeitos” que o tornam especial.

Bom, agora deixa eu ir porque o furo tá aqui me dizendo que a Aline vem aí. Fui!

Tirei os cabelinhos de papel da lateral da folha e entreguei o texto pra professora.

***

São Paulo, Brasil, abril de 2000.

- Robson, aqui está a tua redação – falou a professora Irene – meus parabéns! Seu texto está muito bom!

Meio sem jeito, tímido, peguei a redação e guardei na mochila.

***

- Filho, você tirou 10 na redação e não me falou nada? – disse minha mãe, que andara fuçando na minha vida escolar novamente, como sempre.

- Ah, mãe... – eu não via muitos motivos para alardear esse tipo de coisa.

- Parabéns, você escreve bem! Mas tem algumas coisas que pode melhorar, senta aqui pra eu te ensinar algumas coisas...

sexta-feira, 18 de março de 2011

054

Montevidéu, Uruguai, 18 de janeiro de 2011

- Nego, posso te pedir uma coisa? – puxa assunto o Nego.

- Fala...

Eu estou deitado na cama – isso é tudo o que eu tenho feito nos últimos dias. Não tenho vontade de fazer nada. Sequer tenho observado a vida passando ante meus olhos. Não fosse o fraco sinal de internet sem fio que a gente pega de algum lugar na vizinhança, e que me permite algum contato com o mundo, minha atividade se reduziria a dormir. Com o Nego não é diferente

- Faz tanto tempo que a gente só tá comendo pão... Será que você podia fazer um macarrão hoje?

No dia em que a gente chegou nesse quarto, ficamos agradecidos por ter um teto. O lugar estava uma imundície: cheio de pó, de lixo, de insetos. Até preservativo usado a gente encontrou. As paredes “pintadas” com cal já tinham perdido há muito qualquer coloração que não o cinza da sujeira. Uma foto do Gandhi encontrada no armário capenga, porém, me deu a força necessária pra aceitar esse “estado transitório”. Mas agora, nesse momento, minha energia inexiste – foi totalmente sugada pela pobreza do lugar. Com o Nego não é diferente.

- Tem certeza que você quer encarar aquela cozinha? – pergunto.

- Sim... Eu não agüento mais comer pão...

- Ta bom, eu vou tomar banho e depois vou ao mercado comprar molho e tempero...

Eu levanto, pego minhas coisas e vou para o banheiro. A fraca iluminação do cômodo, somada aos azulejos e pisos velhos, gastos e quebrados do lugar, me transporta àquele banheiro do filme “Jogos Mortais” – tenso.

Com muito cuidado para não encostar em nenhum lugar desnecessário, eu tiro minha roupa e a penduro na maçaneta da porta. Dou uma olhada no espelho, e não sei o que é pior: as manchas e rachaduras do objeto, ou minha cara de completo desânimo. A área do chuveiro está completamente alagada, o que demonstra que alguém tomou banho e o ralo entupido não deu vazão à água suja. Ligo o chuveiro e entro debaixo d’água tentando não pisar naquela meleca feita de cabelo e micose.

“Que saudade do apartamento onde morava em Buenos Aires” – penso.

Termino o banho o mais rápido possível, me seco, me visto e vou pro quarto guardar as coisas. Pego o dinheiro, as chaves e vou pro mercadinho.

O dia está ensolarado, e a rua quase sem movimento. Parece que meu desânimo tomou conta da cidade. Caminho umas três quadras e entro no primeiro lugar que encontro.

Talvez sejam meus olhos, mas eu duvido. O mercado também tem um ambiente triste. As prateleiras se amontoam umas sobre as outras, dividindo um espaço muito reduzido. A iluminação quase inexistente não consegue esconder a sujeira do lugar, e os produtos... Bem... Está difícil escolher uma cebola que seja, no mínimo, comestível.

Depois de muito tempo selecionando, compro uma cebola, uma cabeça de alho, um suco em pó, um óleo, um sal e um molho de tomate – tudo do mais barato, pois é o que o dinheiro permite.

“Essa Montevidéu ta bem diferente daquela que conhecemos com o Leo, alguns dias atrás...” – penso, enquanto caminho de volta pra pensão.

- Você me ajuda lá na cozinha, pra ir mais rápido? – pergunto pro Nego, ao chegar no quarto.

- Sim! Você vai cozinhar agora?

- Vou...

Pegamos as compras, o macarrão que trouxemos de Buenos Aires (presente do Leo) e descemos até a cozinha. Quando chegamos no cômodo, eu preciso fazer muito esforço pra seguir com o propósito de cozinhar.

A cozinha é pequena. Os azulejos gastos e rachados - como de todos os outros cômodos – estão completamente engordurados. Pego uma panela igualmente engordurada e muito nojenta e passo para o Nego dar uma lavada. Coloco água na panela virtualmente limpa, óleo e sal, e deixo ferver – num fogão também muito sujo e engordurado, além de bambo.

Enquanto isso, com uma faca cega e sem dentes eu corto (ou tento) a cebola e o alho.

- Me dá outra panela aí – falo pro Nego.

Ele, ao mexer no escorredor de louças para pegar o objeto, descobre que o lugar também serve de moradia para baratas. Nojento.

- Mano, puta merda! Isso é muito tosco! Tipo, a gente chegou agora e vai sair daqui a pouco, mas imagina esse povo que passa uma vida num lugar desses...

Triste.

Refogo o molho, boto o macarrão – já cozido à essa altura – e espero mais um pouco, com o fogo baixo, para que o molho fique um pouco mais consistente.

Terminamos e subimos pro quarto.

Comemos.

Depois da refeição, desabafo:

- Meu...não dá mais pra ficar aqui...

quarta-feira, 16 de março de 2011

053

Montevidéu, Uruguai, 16 de janeiro de 2011

Eu saio da pensão e fico esperando a Anni sentado no degrau da porta. Nós combinamos passear pela orla da praia e, depois, procurar um lugar onde possamos sentar e tomar mate juntos. O dia, porém, não parece muito propício a isso: está nublado. Ao meu lado, o encarregado e o porteiro do turno da noite conversam qualquer coisa enquanto fumam.

Avisto a Anni no horizonte e, mesmo sem a certeza de ser ela mesma que se aproxima, me levanto e vou em sua direção.

- Oi! Como você está? Eu estava com saudades... – falo.

- Eu também! Estou bem, e você?

- Bem... Deixa eu levar essa bolsa pra você!

- A, não precisa! Está pesada...

- Sim, é o que parece, e por isso mesmo eu devo levá-la!

Com alguma relutância, a Anni me entrega a bolsa onde estão os aparatos para tomar mate: a garrafa térmica, a “bombilla” (o canudo) e a cumbucazinha – além da erva, é claro.

De mãos dadas caminhamos até a orla da praia, onde rapidamente nos sentamos de frente para o rio (ou mar, ainda não posso definir o que é o que, nesse ponto onde água doce e salgada se fundem imaginando ser o amor entre opostos algo possível – ou talvez sem pensar nessas besteiras, querendo apenas estar uma com a outra).

- Nossa, eu adoro essa vista, sabe? Essa vastidão de água que preenche todo o horizonte me dá uma calma, mas ao mesmo tempo uma ansiedade de lançar-me por aí...

- Eu também! É por isso que eu sou feliz aqui em Montevidéu. Eu sempre olhava pro mar, em Husum (cidadezinha ao norte da Alemanha), e sentia muita falta disso em Mendoza (cidade argentina que fica próxima aos Andes). É como se as montanhas me prendessem, sei lá...

Ouvindo a Anni, tenho a impressão que ela é uma alma errante, que anseia pela liberdade acima de tudo. Nunca a prisão da carne me pareceu tão difícil para uma pessoa como me parece pra ela. Por isso mesmo, não descarto a possibilidade de inventar nela a pessoa que sou – dificilmente a gente não age assim, estamos sempre moldando no outro o que somos.

- Me fala, como é Valizas?

- É uma cidade muito pequena, quase um povoado...

- Sério? O camping onde você ficou era muito longe da praia?

- Não, umas quatro quadras! Lá é muito pequeno, nada fica longe da praia...

- Entendo... E como é? Tem montanhas ao redor? Tem que descer uma serra para chegar no litoral?

- Não... É tudo muito plano. Sabe como é o caminho de Colonia del Sacramento até aqui? É igual...

- Hum...

Apesar de ter feito esse caminho umas três vezes, eu não sei dizer como ele é, exatamente, pois dormi na maior parte do tempo. Da parte que me lembro – aquele na qual andei um pouco de carona e caminhei uma eternidade na beira da estrada, dias antes, com o Nego e o Leo – eu posso dizer que, de fato, o caminho é plano.

- E como foi lá? O que você fez?

- Nada demais... Não há muito o que fazer da vida lá, além de entrar no mar e pensar na vida...

Silêncio.

Venta muito. Tanto que meus cabelos parecem querer me abandonar e seguir seu próprio rumo – e os da Anni também, ainda que de uma forma mais comportada. Seus olhos me parecem menos brilhantes hoje, talvez por estar o dia nublado, ou talvez o dia esteja nublado pela falta de brilho nos olhos dela.

Ela puxa o ar, como que tenta dizer alguma coisa, e desiste de falar – não pela primeira vez. Eu já sei o que está por vir, então decido ajuda-la a entrar no assunto, algo que lhe parece quase impossível:

- Você conseguiu pensar sobre aquilo?

- Sim. Eu me sentei numa pedra bem alta e fiquei ali, o dia todo, olhando para o mar e pensando...

- E conseguiu tomar alguma decisão?

- Sim....

- E? Qual foi?

Diferente do que eu poderia imaginar, não estou ansioso. Eu gosto da Anni, e não seria exagero dizer que, em outra época – tanto pra mim, como pra ela – isso poderia se tornar uma paixão, daquelas avassaladoras que a gente sempre espera viver, ainda que negue isso na maior parte do tempo.

Não estou ansioso, porque isso não é meu. Esse momento não é meu. É dela. Sei disso, e por isso me dôo, me ponho como não mais que uma mão a ajuda-la a seguir seu caminho, como quem ajuda alguém a atravessar a rua.

- Eu quero tentar de novo com ele. Quero reatar com meu ex-namorado.

A tristeza me visita nesse instante. Mesmo sabendo que tudo tem seu tempo, que tudo tem uma razão, eu me sinto triste. Rejeitado. Meu coração bate mais acelerado, o peito dói, a boca seca. Meu olhar não encontra o dela, foge – não o da carne, que segue estático olhando aqueles olhos azuis sem brilho, mas o da alma, que procura abrigo. Me pergunto se ela pode notar isso.

Esse instante, porém, é muito mais breve que um piscar de olhos. Eu mudo rapidamente o foco do meu sentimento (e aqui fico feliz de notar o resultado de tanto treinamento), afinal, não é meu momento, é o dela.

- Fico feliz por você, Anni. Não nego que fico triste por mim, mas fico muito mais feliz por você! Essa é uma decisão difícil, e você conseguiu toma-la...

- Desculpa...

- Você não deve me pedir desculpas! De verdade, fico contente que você ainda acredite no amor que sente por ele, e esteja disposta a tentar novamente!

Talvez seja impressão minha, mas eu quero acreditar que o brilho está voltando pr’aqueles olhos azuis novamente.

- Sabe, eu gostaria que ele pudesse ser um pouco como você...

- E certamente gostaria que eu pudesse ser um pouco como ele!

- Hum... Não sei em quê você poderia ser como ele...

- Mas certamente há muitas coisas – coisas essas que te fazem amá-lo!

A chuva que se anunciava começa a cair, tão forte e intensa como a importância daquele momento em nossas vidas.

- Nossa, essa chuva é igualzinha à chuva que cai no verão, em minha cidade natal! – digo. Faz muito tempo que eu não tomo um banho de chuva assim!

Nos levantamos e voltamos pra casa caminhando – não adiantaria correr, já estamos ensopados. Seguimos conversando sobre qualquer trivialidade a respeito de chuva e infância, até que chega o momento da despedida.

Eu tomo seu rosto molhado em minhas mãos. Olho dentro de seus olhos e digo, calado, tudo aquilo que as palavras não conseguem. Puxo seu corpo para junto do meu, e lhe dou o último beijo. Assim, sem adeus, vou embora sem olhar pra trás.

terça-feira, 15 de março de 2011

052

São Paulo, Brasil, 30 de abril de 2010

Sem conseguir dormir, depois de uma noite de emoções intensas, eu observava o Nego dormindo no sofá, enquanto ouvia John Mayer no fone de ouvido e escrevia sobre o que havia vivido horas antes, no Shopping Bourbon (São Paulo capital, Brasil):

Surpresas

Ontem me surpreendi. Surpreendeu-me notar o quanto a vida pode ser complicada. Surpreendeu-me notar o quanto podemos complicar a vida. Acima de tudo, me surpreende o quanto é bom levar uma vida complexa. Dói, mas faz crescer. Não é surpresa pra mim o fato do crescimento vir acompanhado da dor, ou vice-versa (não importa), tampouco o fato d'eu estar acostumado com tudo isso. Não é mais surpresa o fato d'eu saber lidar com tudo isso – eu cresci.

Não fiquei surpreso porque existem pessoas como eu. Fiquei surpreso por me conhecer à ponto de ver-me nestas pessoas e, por isso mesmo, saber exatamente o que fazer. Fiquei surpreso por ter feito o que tinha de fazer. Fiquei surpreso por ter feito direito. Fiquei mesmo muito surpreso ontem.

Ontem me surpreendeu o amor. Ele esteve ali conosco, suspenso no ar. Na verdade parecia uma outra pessoa ali com a gente, o amor. Surpreendeu-me o fato de nunca tê-lo notado, pois eu sei que ele sempre esteve ali. Eu sou o amor. “Alguém” precisou me dizer isso pra que eu entendesse o que acontece aqui dentro. Isso não me surpreendeu: é muito mais fácil a gente se conhecer quando ouvimos – de verdade – o que os outros têm a dizer.

Aquele momento me surpreendeu. Na verdade, estou surpreso até agora. Me surpreende – e muito – o fato d'eu não encontrar palavras pra descrever tudo aquilo. Como eu poderia? O adjetivo mais próximo que posso encontrar agora é *mágico*. Aquele momento, ontem, foi mágico. Nós três ali, eu, ela e o amor – uma trindade perfeita. Um uníssono perfeito.

Há pouco tempo, surpreendeu me notar o quanto os caminhos tortuosos da vida parecem meticulosamente planejados por uma inteligência superior. Chega uma hora em que todas as voltas começam a fazer sentido, pois o fato de um caminho ser o mais curto não quer dizer que seja o melhor.

Surpreendeu-me notar como certas coisas – aquelas verdadeiras – sempre farão parte de nossa vida. Estas coisas são como a velocidade da luz, mais fortes que o tempo e o espaço. O amor é uma coisa destas, com certeza!

Nossa cumplicidade não me surpreendeu. Não ontem. Há 10 anos foi uma surpresa – não mais. Nossa sinceridade também não me surpreendeu – isso nem há 10 anos. O que me surpreendeu ontem foi a conexão. Não por ela existir entre a gente, mas por existir algo assim. A gente sempre imagina que duas pessoas possam conectar-se desta forma, assim como sempre imagina que Deus existe. Experimentar isso é que surpreende.

Meu ritmo é descompassado e o dela também – isto não é surpresa. Mas os dois formam uma polirritimia perfeita – isto também não é surpresa. Ontem fiquei triste com ela, fiquei feliz com ela, fiquei triste por ela, fiquei feliz por ela. Pude – e posso – sentir sua dor, a ponto de pedir pelo amor de Deus: pare de fazer-nos sofrer. Pude – e posso – sentir sua paixão, a ponto de pedir pelo amor de Deus: viva esta paixão! Nossa! Isso me surpreendeu.

Então assim é amar alguém de verdade – quando nada é tão importante quanto a felicidade da pessoa amada, mesmo que não seja você a trazer esta felicidade. Esta felicidade que só a paixão traz. Que se dani quem traz a paixão, o importante é que ela está apaixonada – está viva! Isto pode ser surpreendente pra quem lê este texto, mas pra mim não é. O amor é mais forte que o tempo e o espaço. Viva o que tiver de viver, e volte pra mim quando estivermos prontos para jamais nos separarmos. Uma união perfeita é o que eu espero, e por isso posso esperar a vida toda!

Ontem surpreendeu-me notar o quanto eu cresci, o quanto me tornei forte, o quanto me tornei sábio. Mas não me surpreendeu notar o quanto tenho de crescer, o quanto tenho de ser forte, o quanto tenho de adquirir sabedoria.

Ontem me surpreendeu, acima de tudo, notar que o amor verdadeiro – verdadeiro de verdade! - existe mesmo, que é visível, palpável. O que não me surpreendeu nenhum pouco foi notar que este é o amor que sentimos um pelo outro.

Amo você.

segunda-feira, 14 de março de 2011

051

Montevidéu, Uruguai, 11 de janeiro de 2011

Perdido na imensidão daqueles olhos azuis, eu falo pra Anni:

- Eu pensava que você era uruguaia! Você fala o espanhol quase sem sotaque!

Esse é o tipo de coisa que me encanta: o espanhol não é minha língua materna, e nem a dela. Não fosse nosso conhecimento nessa língua, nossa comunicação seria quase nula, mas graças a esse idioma, podemos trocar experiências maravilhosas...

- Que nada, você que fala bem... Mas o povo daqui tem cara de europeu mesmo, dá pra confundir. Também, aquele fulano...o...eu não lembro o nome dele, mas ele aparece na nota de 100 pesos argentinos, Sarmiento, acho. Ele matou todo negro e índio que encontrou pela frente...

- Nossa! Eu não sabia disso! Vou pesquisar sobre depois... Mas isso é foda né? O Hitler matou gente pra caralho e hoje é quase uma heresia tocar no nome dele. Já esse outro que matou tanto quanto, ganhou status de herói...

Nós estamos sentados num banco na Plaza Independencia, uma das mais importantes de Montevidéu. Aqui estão os restos mortais do General José Artigas, guardados num mausoléu feito em sua homenagem, localizado no subsolo abaixo de uma estátua sua que mantém sua imagem visível a todos os governantes do país que adentram a Casa de Governo, esta localizada a poucos metros da praça. O General José Artigas é uma figura muito importante na história uruguaia.

Venta bastante, o que deixa a noite muito mais agradável. Esse, porém, é o único detalhe em que posso prestar atenção. Não sei se o céu está nublado ou estrelado, não sei em que fase está a lua, não sei se há algum movimento ao nosso redor. Só consigo prestar atenção no par de olhos azuis que tentam – e conseguem – hipnotizar-me.

- Qual é o maior sonho da tua vida? - pergunto.

- Meu maior sonho é aprender a amar as pessoas de maneira incondicional – ela responde sem precisar pensar muito.

A Anni é alemã. Ela vive no Uruguai há poucos meses, e já viveu na Argentina também. Quando lhe perguntei o que fazia aqui na América do Sul, quando podia viver na Europa, sua resposta me pegou de surpresa: “o povo na Europa vive meio alienado. Eles não sabem muito bem o que se passa no mundo. Eles não têm muita noção da pobreza em que o povo vive em alguns lugares. Quando eu me dei conta disso, simplesmente não podia seguir levando uma vida daquelas...”.

De fato, eu tive uma impressão muito parecida com essa, quando passei aquele tempo em Londres, no meio do ano passado. Na Europa, tudo é quase perfeito, parece um conto de fadas. Quase perfeito a ponto de entorpecer as pessoas que vivem essa realidade, tirando-lhes a capacidade de enxergar além do próprio umbigo e ver a necessidade de tentar dividir todo esse conforto entre o mundo todo.

- Poxa, mas isso é muito fácil Anni! Basta você entender que todos nós merecemos compreensão e perdão. Quando você perdoa de verdade, você ama incondicionalmente. Qualquer um.

- Eu não consigo perdoar, por exemplo, uma pessoa que tortura outra pessoa. Uma pessoa torturada nunca mais vai levar uma vida normal...

- E nem a pessoa que tortura, né?

- Hum...é...

- Eu acho que torturador e torturado são vítimas do mesmo modo. Não acho que uma pessoa normal escolheria viver torturando outras pessoas, se tivesse plena consciência das profundas conseqüências desse ato – excluindo aqui, claro, pessoas que têm algum tipo de doença psicológica. Leon Uris, por exemplo, descreve no seu “Grito de Guerra”, o processo pelo qual passa um conscrito para que este se torne um soldado – uma máquina de guerra. O sujeito tem sua personalidade completamente destruída – seus valores, suas crenças, suas paixões – através do “treinamento militar”, onde recebe em troca a impressão de que a guerra é algo normal, onde vale tudo...

- É...acho que entendo o seu ponto de vista...

Ao dizer essas palavras, a Anni se aninha em meu peito. Com ela assim, entre meus braços, a vontade de conversar vai embora. Longe de seus olhos azuis por um instante, eu posso ver a noite. Não há estrelas nem lua, apenas nuvens tapando até mesmo o negrume da noite, dando ao céu uma coloração meio cinza, meio púrpura.

- Preciso te falar uma coisa... – ela puxa assunto novamente.

- Fala!

- Meu ex-namorado, aquele com quem eu morava junto na Argentina, tá aqui. Ele veio pra cá porque quer tentar de novo, comigo...

- Entendo...e você, o que acha disso?

- Eu não sei...

- Olha Anni, se você acha que deve tentar novamente com ele, pra mim não tem problema. Não estou dizendo, com isso, que não gosto de você. Pelo contrário. Gosto de você ao ponto de entender que talvez você seja mais feliz ao lado dele...

- Não sei... nós, eu e ele, já passamos por tantas coisas juntos sabe? Tantas dificuldades, e sempre estivemos unidos... Por outro lado, eu sinto que não amo ele com a mesma intensidade de antes... Não estaria tão encantada com você, se o amasse do mesmo jeito...

- Eu sei o que você está dizendo... sabe, eu já fui casado, sei como é difícil aceitar que algo tão bonito possa perder o brilho, chegar ao fim...

- É mais ou menos isso...

- Acho que você deve pensar. Levar em consideração todos os aspectos positivos e negativos de tentar de novo com ele.

- Eu vou fazer isso. Vou viajar nesse final de semana, pra Valizas. Lá vou poder ficar um pouco sozinha e pensar na vida com mais calma...

- Isso vai ser muito bom! Acho que, antes de mais nada, você deve pensar na tua felicidade. Não pense em mim, ou nele. Pense em você. Pode parecer que você vai agir de maneira egoísta, mas a verdade é que, se você agir pensando na felicidade de outra pessoa acima da tua, você não vai conseguir fazer essa pessoa realmente feliz – e priva-la da felicidade sim, seria um ato egoísta...

Ao terminar a última frase, eu fico cego: o sorriso que ela abre é tão intenso e luminoso que parece o próprio sol.