sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

025

Buenos Aires, Argentina, 15 de dezembro de 2010

Puerto Madero é um dos lugares turísticos mais famosos de Buenos Aires. O bairro está atrás da Casa Rosada (a sede do governo argentino) às margens do Rio de La Plata. Logo quando chego no local, a imagem dos arredores do rio Tamisa, em Londres, me vem à mente. Guardadas as devidas proporções, são lugares parecidos.

- Nossa! Isso se parece muito com o rio Tamisa! Esses prédios altos e modernos, com esse calçadão na margem do rio...só falta a Tower Bridge! – falo.

- Você ainda não tinha vindo aqui? – pergunta a Táta.

Táta é minha namorada há apenas cinco dias. “Esse vai ser o namoro mais curto da história” ela disse, no momento em que lhe pedi em namoro. Acontece que nós “ficamos” durante uma semana e, no oitavo dia, eu lhe pedi em namoro, consciente de que ela iria voltar pro Brasil em 6 dias, de férias, e quando retornar à Buenos Aires terá que se dedicar aos estudos de Medicina.

- Não, eu nunca vim...

Caminhamos mais um pouco e eu abro um sorriso quando vejo uma embarcação antiga ancorada junto à margem. Tiro uma foto e a Táta fala:

- Vamos tentar entrar?

- Hum, acho que não pode. Ó, o cara ta pregando algum aviso naquela corda que está fechando a entrada.

De fato, pra minha decepção, não podemos entrar. Seguimos caminhando sob um forte sol – que embeleza ainda mais o dia. A gente anda abraçado, e eu acho isso o máximo. A Táta tem uma altura perfeita, a gente se “encaixa” direitinho. A gente pode andar grudado sem que a bunda de um dispute espaço com a perna do outro. Basta a gente acertar a passada pra poder caminhar em harmonia, como duas engrenagens feitas uma para a outra.

- Ó, aqui tem um Museu que funciona dentro de um barco e nesse a gente pode entrar!

- Sério? – não posso conter minha excitação – Vamos então! – eu tenho fascínio por navios. Tenho vontade de trabalhar num Cruzeiro, algum dia, e vontade de comprar um barco – n’algum dia ainda mais distante – pra desbravar os sete mares.

Nós entramos no Museo Fragata Sarmiento e eu fico boquiaberto, jubiloso como uma criança que ganha um presente. A fragata tem porte mediano. De proa a popa tem aproximadamente 85 metros e de largura uns 12, e possui três mastros onde se distribuem 21 velas.

Era utilizada pela Escola Naval Militar argentina para treinamento dos cadetes. De 1899 a 1939 realizou 37 viagens ao redor do mundo, quando esteve nos portos mais importantes do globo.

A Táta e eu andamos pelo convés até chegar na escada que dá acesso aos níveis inferiores. No primeiro subsolo nós vemos as cabinas minúsculas onde se alojavam os marinheiros, que ainda têm a decoração da época.

- Olha – a Táta aponta pela janela – um Diário de Bordo! Eu quero ler!

A Táta, como eu, é fascinada pela leitura.

Seguimos olhando as coisas, e paramos em frente a um mural de fotos. As fotos da Acrópole, em Atenas, me chamam a atenção, e eu mostro pra Táta.

- Êita! Será que eles tiraram essa foto do barco mesmo? É possível? – ela pergunta.

Vejo o close da fotografia e me lembro do dia em que visitei o lugar. Tento me recordar pra que lado estava o mar, sem muito sucesso.

- Mmmmmm, acho que não. Acho que eles estiveram na Acrópole e bateram a foto.

Ainda no primeiro subsolo visitamos o salão onde eram servidas as refeições para os marinheiros a bordo. Neste salão há uma série de lembranças dos lugares visitados pela Fragata, como um pedaço da Grande Muralha da China, expostos em redomas e vitrines.

- Olha! Acho que isso é o mais próximo que eu vou chegar da Grande Muralha – diz a Táta.

- Eu não – falo instantâneamente – eu tenho o sonho de caminhar sobre essa muralha!

Em outra redoma, há uma espécie de certificado concedido aos marinheiros quando estes visitaram a cidade de Nice, no sul da França.

- Olha Táta, eu já estive nessa cidade! O mar daquela praia é o mar mais lindo que eu já vi!

- Por quê?

- A cor é linda! Um Azul-meio-verde indescritível!

Impossível não lembrar dessa viagem e agradecer, mentalmente, ao meu irmão pelo presente incrível que foi conhecer todos esses lugares! Mais do que isso, pela noção que adquiri de que o mundo é algo muito mais palpável do que imaginamos antes de sair do país.

Nós descemos mais um nível e chegamos na sala das máquinas. O cheiro de óleo, tinta e metal me deixa maravilhado. Aqui há algo enorme, que julgo ser o motor. Há outra coisa que não consigo definir – para a Táta, é a fornalha. Pode ser.

Há poucas pessoas nesse nível – na verdade, só eu e a Táta, mais ninguém. Essa privacidade me anima. Puxo a Táta e lhe dou um beijo. Adoro beijar a Táta.

Ficamos um pouco abraçados, nos olhando, e as três palavras quase brotam da minha boca. Me contenho, pois eu sei que isso lhe pareceria das duas uma: ou algo demasiado forçado, ou algo totalmente impensado.

Depois de desbravar e fuçar em cada cantinho onde o acesso nos é permitido, a Táta e eu nos sentamos num banco no convés da Fragata, na popa, perto do leme.

A Táta está simplesmente linda! Ela veste uma blusinha lilás-quase-rosa cuja tonalidade combina perfeitamente com sua pele. O decote é perfeito – mostra o pescoço, o colo e uma parte das costas (os mais lindos que eu já vi, sem dúvida) sem revelar mais nada. Seu sorriso, sempre iluminando seu rosto, faz do sol uma coisa dispensável.

- Hey, eu adorei quando você me deu colo ontem – falo.

- É? Então vem cá, deita aqui.

Deito no colo dela.

- Eu não quero que nosso namoro acabe depois desses sete dias – ela diz.

- Nem eu, Táta, mas eu acho necessário. Um relacionamento pode te atrapalhar muito nos estudos, e eu gosto demais de você pra ser responsável por isso.

O plano, quando começamos a namorar, era ficar juntos por 7 dias, até ela voltar pro Brasil. Depois disso, mesmo quando ela retornar a Buenos Aires, não seríamos mais namorados, para que ela possa se dedicar aos estudos.

- Como você pode gostar de mim e querer me deixar?

- Acho que esse sacrifício é a melhor prova que eu posso te dar, de que gosto de você...

Mesmo falando essas palavras, eu não estou seguro se quero fazer isso. Eu gosto dessa moça, e quero estar com ela. Isso pra mim é um dilema. Por um lado eu sei que um relacionamento pode acabar com os estudos dela – e eu definitivamente não quero isso – mas, por outro, tampouco quero me afastar dela.

- Nossa, namorado. Você tem um coração tão bom...

Essas palavras me pegam de surpresa. Eu não tenho. Eu quero ter, mas ainda me falta muito. Tenho vontade de dizer pra ela que não sou bonzinho, que já fiz muita coisa errada, que já magoei algumas pessoas. Tenho vontade de dizer pra ela que não mereço que ela goste de mim. Mas a única coisa que consigo falar é:

- Não, eu não tenho. Eu me esforço pra ter, mas quem tem um coração bom, de fato, não precisa fazer esforço...

024

São Paulo, Brasil, Fevereiro de 2010

Foi tudo muito rápido.

Talvez por coincidência – ou talvez fosse a minha forma de ver as coisas naquele momento – o dia estava feio. O céu estava escuro, cheio de nuvens. Garoava. A praça não tinha flores, os pássaros não cantavam e o ruído da avenida à frente era insuportável.

Por mais que eu soubesse que meu casamento tinha acabado, eu voltei da Europa com alguma esperança de recomeçar, de fazer diferente. Ouvir aquilo foi muito, MUITO pior do que eu pensei que seria.

Essa não era a primeira vez que eu me encontrava com a Ná, depois de ter chegado. Na verdade, na noite em que cheguei (no dia 25 de janeiro) eu fui pra casa dos pais dela (onde ela vivia desde o fim do ano anterior, quando desmontamos nossa escola de música) e nós passamos a noite juntos, como marido e mulher.

No dia seguinte, porém, ela me disse que gostaria de se separar; que esse tempo que passamos longe um do outro, enquanto eu estive na Europa, lhe mostrou que ela era capaz de viver sem mim. Eu aceitei, afinal, como minha mãe sempre repete, “ninguém é de ninguém; não podemos obrigar ninguém a ficar do nosso lado”. Ademais, eu também sabia que isso era o melhor a ser feito.

Alguns dias depois nós nos encontramos no Shopping Interlagos (famoso shopping da zona sul de São Paulo) e ela teve uma recaída, quis voltar, mas dessa vez eu segurei a peteca e disse não.

Agora eu estava ali, em meu momento de fraqueza, tentando reconciliar, e dessa vez coube a ela ser forte.

- Acabou, Robson. – ela disse.

Eu chorava. As lágrimas nunca me pareceram tão fortes. Elas irrompiam pelos meus olhos como se tivessem vida própria, eu nada podia fazer além de me entregar e deixar que saíssem até secar.

- Eu não posso deixar você aqui, nesse estado – ela disse.

- Eu vou ficar bem. É melhor você ir, porque eu não tenho forças pra te dar as costas, nesse momento.

Nosso processo de separação foi dolorido para ambos. Tivemos muitas dúvidas em todos os momentos, mas nossa cumplicidade (talvez no ápice de uma vida a dois) nos fez fortes. Nós dividimos o fardo de ser duro frente ao desespero do outro e, assim, pudemos nos libertar um ao outro (e não um do outro). Acho que libertar o outro de algo que lhe faz mal é a melhor prova de amor que existe, mesmo que esse algo seja a própria relação dos dois.

Quando ela subiu no ônibus, eu soube que tinha acabado.

Quando parei de chorar, o vazio me tomou por completo.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

023

San Miguel (Grande Buenos Aires), Argentina, 07/08 de dezembro de 2010

O bolo já está na mesa (farta também em bebidas como refrigerantes de todas as cores e cerveja, muita cerveja) e o pessoal começa a se reunir pra cantar o parabéns pra você. O Leo me disse quantos anos Don Juan está completando, mas eu não me recordo – alguma coisa na casa dos cinquenta.

Com todos por perto, alguém puxa o canto (a mesma melodia, com palavras completamente diferentes – e não por ser outro idioma, mas sim pelo fato de que uma tradução literal não teria o mesmo significado):

- Feliz cumpleaños...

Por não conhecer a letra, eu sigo mexendo os lábios, sem produzir som, como fazem os jogadores de futebol no momento em que inicia a segunda parte do hino nacional brasileiro, para enganar quem vê mas não pode ouvir.

Antes de cortar o bolo, Don Juan faz um discurso e, para meu desespero, depois dele cada uma das pessoas seguem fazendo o mesmo. “Pronto, era só o que me faltava! Vou ter que discursar pra esse povo também” – penso. Eu não gosto de fazer discurso – não pelo fato de falar em público (eu não tenho problemas com isso, e geralmente me saio bem) e sim por não gostar de falar o que penso, me abrir em demasiado.

- Anda Rávsan – Don Juan ainda não consegue pronunciar meu nome direito. Ás vezes ele fala como o Sílvio Santos: “Lommmmbardi-ammmm” – fale em português, não há problema!

Não tem escapatória. Com esse incentivo de Don Juan, todos ficam quietos me olhando, esperando minhas palavras, e esse silêncio pré-discurso começa a me sufocar. Sem mais tempo pra pensar, eu começo:

- Bom, é claro que eu vou tentar falar em castellano, para que vocês possam entender um pouco do que eu estou falando...

Minhas mãos tremem, mas minha voz segue firme.

- ...eu gostaria de agradecer o convite a participar de uma festa tão linda como essa. A oportunidade de estar com você agora é como um presente de Deus a mim e, na verdade, foi por isso que eu saí do Brasil há pouco mais de um mÊs: para conhecer meus irmãos da América do Sul...

Minhas mãos tremem, o suor surge em minha testa, mas minha voz segue firme.

- ...neste momento, eu sinto muita saudade da minha família que está longe...

Minhas mãos tremem, o suor escorre um pouco, meus olhos ficam marejados, mas minha voz segue firme.

- ...mas entre vocês eu posso me sentir em família e isso me faz bem e feliz. Por isso eu lhes agradeço! Muchas gracias!

Passa um breve momento de silêncio (e eu me pergunto se puderam entender o que eu quis dizer) e as pessoas batem palmas – como fizeram depois de cada discurso. Um sorriso brota em meu rosto. “Ufa! Acabou! Agora é o Preto que tá fudido!” – pensei, aliviado por mim e “preocupado” com o Nego.

Ele, o Nego, também discursa tentando falar em castellano. Isso me surpreende pois pensei que ele não teria coragem de discursar, mas ele também tem muita força de vontade para superar os próprios medos e dificuldades.

Quando a gente sai do país e precisa se virar de qualquer jeito, porque ninguém mais vai fazer isso pela gente, a gente se descobre. A descoberta é o primeiro passo. O segundo é o mais difícil – se aceitar. Penso que a auto-aceitação (e por conseqüência o auto-perdão) é o divisor de águas na vida das pessoas. É uma pena que muita gente viva uma vida sem passar por isso – se descobrir, se aceitar, tentar melhorar e crescer.

O Nego termina seu discurso – ele se saiu muito bem – e também recebe aplausos. O Leo também discursa – para fechar a rodada de discursos – e Dona Soledad começa a cortar e distribuir o bolo.

***

Já é madrugada – talvez quatro da manhã. Os convidados já foram embora há algum tempo, e as pessoas que moram na casa já estão dormindo. Na sala, eu, o Nego e o Leo estamos conversando com Don Juan, que ainda tem numa das mãos um copo (sempre) cheio de Quilmes (a famosa cerveja argentina).

Estamos falando sobre temas como revolução, mudar o mundo, criar um lugar onde todos possam viver bem e felizes. Estamos falando de utopias, mas como cantava Lennon em sua (maravilhosa) fase pós-Beatles (obrigado Yoko), nós também acreditamos que um dia todos, unidos, faremos da utopia realidade. Eu falo:

- Eu já li algumas coisas sobre o Che, Fidel, Lênin, Stálin e Mão-Tse. Eu não acredito que uma revolução possa ser feita com armas, guerras e sangue – não uma revolução verdadeira e duradoura. A revolução deve ser feita dentro de cada ser humano e não na maneira como governamos.

Acredito que a verdadeira revolução deve ser feita dentro de cada casa, pelas pessoas comuns. Nós devemos aprender o valor da doação, mas não falo de uma doação financeira. Falo de uma doação mais profunda. Falo sobre doar-nos às pessoas próximas a gente dando-lhes tempo e atenção, fazendo coisas simples como cozinhar, lavar os pratos, manter as coisas ordenadas e mesmo conversando e escutando o que elas têm a dizer.

Esses são hábitos que se desenvolve e se estende a tudo. Quando una pessoa aprende o valor da doação, acaba por doar-se a todos ao seu redor, como familiares amigos, companheiros de trabalho e mesmo a desconhecidos...

Quando aprendemos a nos doar, podemos provar o doce gosto de amar a todos, amigos e inimigos, como dizia Jesus Cristo. Podemos provar o doce gosto do amor verdadeiro.

- Aí está – diz Don Juan – agora você chegou ao ponto: o amor! Somente o amor é capaz de mudar o mundo! Mas é preciso simplificar o amor. Muito se fala sobre as diferentes maneiras de amar: uma pessoa pode amar a seu pai e sua mãe de uma maneira, pode amar a seu amigo de outra maneira, pode amar a sua namorada ou esposa de outra maneira...Isso tudo é demasiado complicado. O amor é um, somente um.

Temos que amar a todos da mesma forma. Não há por que confundir o amor com a paixão, por exemplo, e por isso mesmo o amor pode ficar quando a paixão vai embora...

Quando todos amarem como Jesus Cristo nos amou, teremos nossa verdadeira revolução.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

022

Cidade do Vaticano, 21 de janeiro de 2010

A primeira coisa que me chamou a atenção na Cidade do Vaticano é o desejo deles de nos manter do lado de fora. Por todo o perímetro da cidade há uma enorme muralha – como um presídio de segurança máxima.

O Vaticano é um Estado independente, governado pelo Papa – que detém os poderes executivo, legislativo e judiciário, como num Despotismo (na verdade, o sistema de governo deles é a Monarquia Eletiva). É o menor Estado do mundo, tanto em população como em área. Isso não quer dizer, nem de longe – ao menos para mim – que seja o menor Estado em termos financeiros, ainda que sua renda seja baseada, oficialmente, “apenas” nas arrecadações da Igreja Católica por todo o mundo e no montante obtido com a exploração turística de seu complexo de museus.

Era isso que a gente tentava fazer naquele dia ensolarado – porém frio – nas ruas de Roma: encontrar a entrada dos Museus Vaticanos. Não demorou muito pra gente achar, comprar os bilhetes e começar nossa visita.

Entrar nos Museus Vaticanos é como entrar numa igreja quase infinita. Quase todos os corredores são pintados – paredes, tetos e vitrais – com temas religiosos. Eu sentia que era quase um desperdício estar ali, no meio de todas aquelas obras de arte e não conhecer quase nada de sua história. Ainda que pudesse apreciar sua beleza, passar por ali me parecia aquele tipo de visita “eu estive aqui”, nada mais.

- Beiço, o que tem de legal pra ver nesse museu? – perguntei pro meu irmão.

- A, um monte de coisas! O teto da Capela Sistina, que o Michelangelo pintou, por exemplo.

Disso eu já tinha ouvido falar. O famoso afresco de Michelangelo, que demorou quatro anos para ser concluído (a contragosto do artista, diga-se, por se considerar melhor escultor do que pintor) e se tornou um dos maiores patrimônios da humanidade.

De fato, de todas as “coisas famosas” que visitei no decorrer daquelas férias na Europa – O famoso pub The Cavern, onde debutaram os Beatles em Liverpool; O estádio da equipe de futebol Manchester United, chamado Old Trafford, em Manchester; O castelo medieval de Warwick; A Tower Bridge e o Big Ben em Londres; o Muro de Berlim; A Torre Eiffel, o Museu do Louvre e a Catedral de Notre-Dame em Paris; O Cenacolo Vinciano em Milão; A Acrópole em Athenas – este afresco é, junto com a Duomo de Milão e o Coliseu de Roma, o que mais me impressionou.

Boquiaberto, quase prendendo a respiração, eu olhava pra cima tentando não piscar, para não perder nenhum detalhe – como se pudesse gravar tudo aquilo em minha cabeça, simulando uma câmera filmadora que eu não tinha (e que tampouco poderia utilizar, se tivesse, pois é proibido). Difícil era andar sem pisar no pé de ninguém – e o salão estava lotado de turistas, talvez tão impressionados quanto eu.

O afresco não se parece uma pintura, e nem tampouco uma foto. Parece uma cena que está acontecendo. A noção tridimensional que o artista nos passa é impressionante! De qualquer ponto do salão em que se olhe, a gente acredita que os detalhes são entalhados na construção, e não “somente” pintados.

Michelangelo, como a maioria dos artistas da época, fazia “arte cristã” não tanto por seu fervor católico, mas unicamente porque a Igreja era um dos únicos meios de um artista sobreviver de sua arte. Vendo esse afresco, eu pensava: “Que caralho! Isso foi feito às custas de muito sangue, de muita exploração. Mas, se não fosse essa merda toda, o ser humano teria feito tantas coisas lindas como essa obra?”

Na cena mais famosa – talvez – do afresco, a Criação de Adão, eu fiquei um tanto intrigado. Ainda hoje me parece que Deus se esforça para dar a mão a um Adão um tanto preguiçoso e displicente.

Já vi, em algum lugar – acho que foi meu irmão quem me contou – que nessa cena, Deus está dentro de um cérebro humano, o que supostamente quer dizer que, para Michelangelo, Deus está só na cabeça do homem.

Talvez.

Pra mim, essa cena retrata um Deus que se esforça para ajudar seu filho, que não está lá muito interessado em receber ajuda. Que pessoa crente em Deus – seja lá qual Deus, o que realmente não importa – nunca ouviu aquela célebre pergunta: “se o ‘teu’ Deus existe, porque ele deixa todo mundo se foder?”?

Eu respondo assim, pra mim mesmo, quando me faço essa pergunta: 1 – Deus não é responsável por nossos atos, NÓS somos; 2 – Deus está sempre presente, falando e mostrando o caminho certo, NÓS é que não vemos (ou fingimos não ver); 3 – Se foder faz parte do crescimento.

Depois de muito caminhar e de conhecer até os túmulos de todos os papas, nós saímos dos Museus Vaticanos. Estávamos na famosa Praça de São Pedro – aquela praça enorme, com um obelisco no centro, que sempre passa na TV quando se fala do Vaticano, onde é irresistível tirar uma foto com algum Guarda Suíço e impossível não lembrar do Anjos e Demônios de Dan Brown – quando começamos a falar (eu e a Bru) de um assunto que me incomodava há alguns dias:

- ...e quando eu li aquele artigo no site do Yahoo, eu pude entender o que a Ná tentou me mostrar por tanto tempo. Eu sou um sofista...

Expliquei pra Bru que o artigo em questão falava dos “sofistas do dia-a-dia” ou algo assim - aquelas pessoas que, numa discussão, não querem achar uma solução; querem apenas impor a própria opinião como se fossem os donos da verdade e para isso utilizam argumentos aparentemente lógicos – mas que são absurdos – e, pior, partem para ataques pessoais menosprezando seu interlocutor.

- ...sempre que a gente discutia, eu acabava machucando muito e muito profundamente a Ná...

Em sete anos de relacionamento, isso aconteceu um sem número de vezes. E antes da Ná, aconteceu com a Pianista também.

- ...e o pior é que eu nem me dava conta disso. Eu ficava tão cego buscando um argumento para derrubar o argumento dela que nem ouvia o que ela estava argumentando. E quando não encontrava argumento, atacava a auto-estima dela. Acho que essa é a pior coisa que se pode fazer a outra pessoa: atacar sua auto-estima. Não era raro ela acabar chorando e dizendo: “um dia você vai se dar conta de tudo isso, e vai sofrer demais...”

De fato, hoje eu sofro muito por tudo aquilo.

- Mas pelo menos agora você se dá conta disso, sabe que tava errado e pode melhorar. – disse a Bru.

- É, isso é verdade. Mas eu temo que não tenha mais uma segunda chance com a Ná. Acho que meu casamento acabou.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

021

Buenos Aires, Argentina, 07 de dezembro de 2010

“...o dia tava muito lindo, ensolarado. A praça (um campo aberto e sem árvores) tava lotada de pais e filhos, reunidos para participar da festa. Naquele dia, pais com seus respectivos filhos deveriam competir com outros pais e filhos. Cada um tinha uma pipa, e venceria a dupla dona da última pipa no ar.

O Juan tinha me perguntado, no dia anterior, diversas vezes, se o seu pai iria na festa com ele. Eu não quis dizer ao menino, mas a verdade era que eu desconfiava que seu pai não iria.

O Juan, até hoje, não conhece seu pai. Eu já lhe falei, algumas vezes, que o dia em que ele tiver vontade de conhece-lo, eu irei junto. Mas o menino nunca demonstrou vontade de conhecer o pai – pelo menos não depois daquele dia.

Naquele dia, ele ficou o tempo todo atento procurando por seu pai, enquanto as duplas se preparavam para a festa – cada uma fazendo a própria pipa, o próprio cerol (um preparado de cola e vidro, que se passa na linha para cortar a linha do adversário) e a própria rabiola.

Não tinha como dar certo, minha relação com o pai do Juan. Nós éramos muito jovens quando engravidei. Não tínhamos nem certeza do que iríamos fazer da vida, como poderíamos estar preparados para uma vida a dois – digo, a três? Mas isso tampouco justifica o fato dele nunca ter vindo conhecer o próprio filho!
O único pai que o Juan conhece é o avô. Meu pai o cria como um de seus filhos, e por isso lhe sou muito grata. Meu pai é um homem muito bom. Um tanto rigoroso, é verdade, mas assim mesmo muito bom. É uma pena que não tenha ido – por conta do trabalho – à festa para acompanhar o Juan.

Me partiu o coração notar como o meu filho esperava por seu pai naquele dia. Quando finalmente começou a batalha das pipas, eu fui seu pai. Não duramos muito, pois eu nunca havia empinado uma pipa antes. Assim mesmo, meu filho me deu um abraço apertado e me disse algo que jamais vou esquecer: ‘eu te amo, mamãe’.”

Quando a Noelia termina de falar, as lágrimas escorrem pelo meu rosto. Por sorte a festa está tão animada – chegaram mais uma dezena de convidados – que os únicos que notam isso são a própria Noelia e o Nego.

- Che, você não precisa chorar. Eu já chorei muito por isso... – ela diz, para me consolar.

- Você é muito forte, eu te admiro! Que vida de merda você teve em alguns momentos, não?

- Y sim, mas já é passado! E quem nunca teve uma vida de merda às vezes?

- Sim, você está certa, mas assim mesmo tua história é muito triste.

Eu adoro ouvir histórias da vida alheia. Acho incrível como cada um tem vivências dignas de se escrever num livro. Me delicio tentando imaginar cada momento, criando cada cena em minha cabeça, pensando em como seria vivenciar todos esses momentos.

Enquanto ouvia a história da Noelia, não pude deixar de lembrar da história da minha avó, que criou seus cinco filhos sozinha, e da história – que em grande parte eu desconheço – do meu pai, que cresceu sem um pai.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

020

Monte Carlo, Mônaco, 11 de janeiro de 2010

Já no trem a paisagem anunciava o que estava por vir. O quadro em movimento era tão lindo que qualquer descrição é mera formalidade. De qualquer forma... De onde estava sentado era possível observar o mar delimitado pela serra e pelo céu. O sol irradiava luz e vida para todos os lados, mas o calor só era sentido pelos olhos, afinal era inverno no sul da França. O céu limpo era de um azul puro como o próprio reino dos céus, e rivalizava apenas com o azul-verde-marinho da água, onde os barcos deslizavam com a altivez de um monarca (não um monarca francês, certamente).

Estávamos num trem que partira de Nice com destino a Monte Carlo – eu, minha mãe, meu pai, meu irmão e minha irmã (cunhada). Talvez o Luke (sobrinho) já estivesse por ali, ou no meu irmão ou na minha irmã (risos). Eu podia, ao mesmo tempo, sentir saudade da Ná e estar feliz por ela não ter viajado conosco. Estranho.

De cara a cidade mostrou porque é tão famosa: ao sair da estação de trem dei de cara com o mar (lindo). Não demorou para o queixo cair. Caminhando um pouco pela cidade me rendi ao glamour das Ferraris, dos Porsches, Lotus e Lamborghinis distribuídos pelas ruas que, para meu espanto, paravam para atravessarmos as ruas a qualquer momento – não sei se por educação ou puro deleite dos condutores, ao notarem nossa admiração por seus carrões.

Na marina, Iates. Muitos Iates. Grandes, luxuosos, vazios. E muito caros. Os Iates são realmente incríveis, nos faz querer subir a bordo, tocar, fotografar, levar pra casa. Literalmente.

Caminhamos pela praia, boquiabertos. A falta de ar não vinha pelo cansaço (que cansaço? Estou em Mônaco!), mas sim pela beleza do local – se Deus criou o mundo de fato, este lugar ele não fez apenas com palavras, aposto que arregaçou as mangas e o pintou com mais habilidade e intensidade que Da Vinci ou Michelangelo sequer poderiam imaginar.

Foi então que a dúvida ganhou espaço: “será que o Criador perdeu tanto tempo nesta tela que foi obrigado a terminar de qualquer jeito certos lugares como a maioria das nações africanas, ou os países latino-americanos? Mas esses lugares também têm paisagens lindas...” – pensei.

Continuamos nosso passeio seguindo (ou tentando) o traçado do famoso circuito de Fórmula 1. Saímos da orla da praia e começamos a conhecer um pouco da cidade. Com alguns prédios incríveis e outros nem tanto, o luxo e o poder financeiro entravam por nossos poros sem pedir licença. Neste lugar se encontra o metro quadrado mais caro do mundo. Isso não é obra Deus. Não diretamente.

A dúvida persistia: “como podem ser os homens todos iguais, se alguns mal têm para comer, e outros mantêm este paraíso para visitar uma ou duas vezes no ano? Os homens são todos iguais aos olhos de Deus? Aos olhos do homem? Será que é justo eu desejar viver neste lugar quando tantos ‘querem apenas sobreviver’? E será que é justo não querer se alguns o fazem? Não sei.”

A experiência foi incrível. Inesquecível. Inaceitável.

domingo, 26 de dezembro de 2010

019

Buenos Aires, Argentina, 07 de dezembro de 2010

O trem já está partindo e nós ainda estamos comprando as passagens. Rapidamente, o Leo pega os bilhetes, corre e salta para dentro do trem, já em movimento. O Nego é o segundo, e demora tanto que eu temo ficar pra trás (ele não tem culpa, é mesmo um tanto complicado vencer a altura de um metro entre o chão e a porta com o trem em movimento). Meto minhas mãos no seu traseiro e lhe empurro, para, em seguida, pular também. Que sorte termos embarcado todos!

Nós estamos indo para a casa do tio do Leo, na província de São Miguel. O Leo é nosso novo companheiro de banda. Nós o conhecemos há pouco mais de três semanas, na Plaza Del Congreso, em Buenos Aires. Eu e o Nego tocávamos e cantávamos quando ele se aproximou, ouviu, se apresentou, tocou um pouco, deixou seu contato e se foi. Desde então nós nos encontramos regularmente para fazer música – e compartilhar o mesmo sonho.

Ele, o Leo, é peruano. O fato de nos encontramos aqui, na Argentina e de maneira tão casual, me parece uma espécie de sinal divino. O meu problema é que às vezes penso que nada tem significado, exceto aquele que nós mesmos lhe atribuímos e, por isso mesmo, temo estar me enganando. Difícil seguir determinado em busca de algo quando se tem dúvidas a respeito de si mesmo. Nesses momentos eu me agarro numa frase do Bono: “eu duvido de mim a todo instante, mas nunca duvido daquilo que eu quero fazer”.

No último vagão do trem – um vagão de carga, sem bancos (um caixote, nada mais) destinado às bagagens e às bicicletas – nós tiramos o violão e o baixolão das capas e começamos a tocar algumas canções – eu no baixo, o Leo na guitarra e o Nego cantando. Além de nós três, há outras pessoas sentadas no chão (talvez para tomar conta de seus pertences). Não demora muito para que eu sinta o cheiro da “mariguana” (maconha) contaminando o ar.

Passam-se uns 10 minutos e o Leo propõe:

- Vocês têm vontade de mudar de vagão? Digo, a gente podia tocar um pouco em cada vagão e ganhar umas moedas, o que lhes parece?

- Sim, me parece muito bom! E você, Emerson? – respondo o Leo e pergunto ao Nego.

- Sim!

A verdade é que isso não me agrada nem um pouco. Tocar uma ou duas canções e depois passar o chapéu para ganhar moedas me parece algo como pedir esmolas. Na verdade, o fato de pedir, pura e simplesmente, me incomoda muito – não sei se por orgulho, ou por pensar ser auto-suficiente, ou pela criação que tive, quando minha mãe falava que “pedir é feio” (e é claro que havia um contexto onde “pedir era feio”). Assim mesmo, eu aceito tocar e pedir moedas – tenho consciência de que preciso aprender a pedir – e aceitar – ajuda.

Em cada vagão, o Leo nos apresenta como uma banda, diz que vamos tocar algumas canções para entreter a viagem das pessoas e que vamos passar a capa da guitarra para que aqueles que queiram contribuir coloquem algumas moedas – ou notas. Depois da apresentação, nós tocamos um par de canções antes de passar a capa e passar para o vagão seguinte. E assim eu ganho meu primeiro dinheiro fazendo música, nesse ano.

Enquanto tocamos, em pé no corredor do vagão, eu me perco em pensamentos, olhando pela janela e vendo a paisagem. Um dia ensolarado, um campo vasto e verdinho, com algumas árvores e algumas casas pintam o cenário que me comove. Eu não preciso de muitas coisas para ser feliz.

Por estarmos absortos em nosso trabalho, passamos da estação onde deveríamos descer. Seguimos até a última estação da linha (esse é um trem metropolitano, não um trem de longas viagens) onde podemos pegar um trem no sentido contrário para regressar à estação onde devemos descer.

Quando, finalmente, descemos na estação de São Miguel, pegamos um ônibus em direção à casa do tio do Leo. Hoje é aniversário de seu tio e o Leo nos convidou para a festa. Ele havia falado sobre nós com seu tio, e como seu tio gosta de conhecer pessoas de outras nacionalidades, disse ao Leo que nos convidasse para conhecer sua casa.

Descemos do ônibus – antigo, mas bem cuidado (não solta aquela fumaça preta como os ônibus “novos” de São Paulo – e andamos algumas quadras, por ruas de terra, até chegar em nosso destino.

A casa de Don Juan – assim se chama o tio do Leo, Juan – é uma construção inacabada, com os tijolos da parede ainda à mostra. O chão do quintal é de terra (como o da rua) e na garagem há um carro antiguíssimo, talvez dos anos 60. O interior da casa também é um tanto simples, com seu chão de terra batida e seus móveis velhos (velhos pelo uso, e não por serem antigos, o que de fato não são).

Ao passarmos pelo portão de ferro (um pouco enferrujado) logo somos apresentados á família: ao tio Juan, à tia Soledad, às primas Noelia e Joana, ao primo Emanuel e ao sobrinho Juan (como o avô), filho da Noelia.

Não demora muito e Don Juan – o tio – começa a conversar conosco sobre o Brasil. Fala um pouco de futebol, mencionando o Maracanã, o Pelé (Edson Arantes do Nascimento é o que ele diz); fala um pouco sobre a feijoada, perguntando de que é feita, e pergunta se a caipirinha nos deixa bêbados muito rápido.

Quando começa a falar do Lula, o tom da conversa – antes descontraído – fica um pouco mais sério. Ele menciona nosso presidente – Luis Inácio da Silva, ele fala – e diz que se trata de um grande homem, que está transformando o Brasil num país melhor.

Para sua surpresa, porém, eu digo que me preocupa essa fama do Lula. Me preocupa o fato das pessoas o seguirem quase que cegamente, sem muitos questionamentos. Me preocupa que tenha eleito a Dilma, uma pessoa que muito poucos conhecem, de maneira tão fácil. Ele não entende o que eu quero dizer, então eu tento explicar, com meu castellano limitado:

- O que me parece é que no Brasil, assim como em toda a América do Sul, as pessoas querem “heróis”...

- “Heroes” – me corrige, solícito, o Leo.

- ...parece que as pessoas querem “heroes” – prossigo – e não governantes, entende? Não me parece que nossos governantes devam ser heróis, e sim gente comum cujo trabalho seja melhorar a vida das pessoas, nada mais. Essa maneira como lidam Lula no Brasil, Kirchner na Argentina, Chávez na Venezuela e Morales na Bolívia, por exemplo, não pode estar certa. São quase como messias para o povo...

Estes governantes são como caudilhos que se fazem “libertadores da América”, como Bolívar, San Martín, Zapata, Che, Fidel e tantos outros. Creio que essa imagem de herói é perigosa porque heróis não existem, todos somos pessoas comuns, e são as pessoas comuns que podem fazer do mundo um lugar melhor. Essa idéia de heróis, de que somente os heróis (os grandes homens) podem fazem algo bom, nos torna (as pessoas comuns) impotentes e por isso nada fazemos para mudar o mundo... Nós todos podemos – e devemos – mudar o mundo.

- Sim, você tem razão. – diz Don Juan.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

018

Berlim, Alemanha, 09 de janeiro de 2010.

A Segunda Guerra Mundial foi o conflito mais feroz – e insano – da história humana recente (talvez de toda ela). Afora todos os combates e todas as vidas perdidas, houve casos ainda mais extremos, como o dos judeus que sofreram com o genocídio, o dos japoneses com as bombas atômicas e o dos alemães – pivôs do episódio – que tiveram seu país destruído e divido entre os “vencedores”, ao final da guerra.

Essa divisão ilustrou o que viria a ser o cenário mundial por muitas décadas depois: um mundo bipolar sob uma guerra ideológica entre capitalistas (liderados pelos Estados Unidos da América) e comunistas (liderados pela União Soviética), os dois “vencedores” da Segunda Guerra.

Tudo isso, para mim, não passava de teoria, de matéria do colégio ou tema de filmes e documentários. Foi assim até aquele momento. Fazia muito frio. MUITO frio. O céu estava completamente tomado por nuvens plúmbeas e nevava generosamente. O vento, gelado, cortava a jaqueta, a pele e a carne – com uma facilidade incrível – e congelava a alma.

- Robson, coloque mais uma blusa! – advertiu minha mãe, antes de sairmos do hotel.

Andando em direção ao nosso primeiro destino “turístico” na capital alemã, eu me arrependia de não tê-la escutado. A verdade é que eu não podia tê-la escutado – não naquela manhã, quando havia acordado mais rabugento que o normal. Ali na rua, porém, já com domínio de minhas faculdades mentais (depois de esquentar meu velho carro a álcool), só me restava suportar o frio.

Berlim se parece um pouco com São Paulo. Tem avenidas largas, prédios altos, linhas de trem, metrô, ônibus. Não fosse toda essa neve, as palavras ilegíveis por todos os lados e os sons dos diálogos alheios – totalmente estranhos aos ouvidos – eu pensaria estar em casa.

“Caraca! Ainda é difícil acreditar que eu estou aqui” – pensei – “de repente o mundo começa a se tornar algo palpável. Não, melhor: algo real! Estranho é que eu nunca pensei, nem uma vezinha sequer, que iria conhecer esse lugar, e agora estou aqui”. Eu estava emocionado. Sou muito grato ao meu irmão por essa (e outras) vivência que ele me proporcionou.

Andamos um pouco mais e chegamos, finalmente. O pedaço preservado do Muro de Berlim parecia inofensivo – e de fato era, como sempre fora. O problema era os homens ao seu redor. Sempre os homens. O Muro de Berlim simbolizava a divisão do mundo e, mais do que isso, simbolizava a incapacidade humana de olhar além de seu próprio umbigo.

Sobre o que vi, não há muito o que dizer. O Muro não mais impedia os alemães de ir e vir, de escolher entre viver o capitalismo ou o socialismo (essa era a função do Muro, dividir a cidade entre Berlim Ocidental, território capitalista, e Berlim Oriental, território comunista). Sua função era, agora, impedir o esquecimento daquele episódio nefasto. Essa função aquele pedaço de pedra de quase três metros de altura, com uns trinta centímetros de largura e uma extensão que não posso calcular, hoje pintado (“graffitado”) com mensagens pacíficas, cumpre muito bem.

Sobre o que senti, ainda procuro palavras. Palavras para compreender meus sentimentos e, depois, compartilhá-los. É uma coisa um tanto complexa. Algumas coisas eu descobri: não sou capaz de tomar partido – fico triste pelos dois lados, pois aos meus olhos, todos são vítimas; não fico completamente triste com essas histórias (talvez uns 90%), pois de alguma maneira eu sei que estamos evoluindo (mesmo que a passos lentos) como seres humanos.

Passeamos mais um pouco. Visitamos o famoso Portão de Brandemburgo – espécie de arco do triunfo, que existe desde meados do século XVIII, de construção no estilo gótico – onde alguns artistas de rua fantasiados de russos e americanos tiravam fotos com turistas; depois o Monumento ao Soldado Russo (uma homenagem aos dois milhões de soldados soviéticos mortos na Segunda Guerra), onde há uma estátua enorme de um soldado vermelho, um tanque e um canhão de guerra - coisas com as quais faço questão de posar para uma foto. Dali, visitamos o Reichstag, importante edifício alemão que abrigou os governos daquele país, inclusive o governo de Hitler, e depois, visitamos o Monumento aos Judeus Assassinados da Europa.

Neste último, mesmo sem saber, fizemos uma linda homenagem às vítimas do holocausto. O monumento é um campo extenso, repleto de blocos de pedra que desconheço o nome (me parece algo como um granito negro), com dimensões variadas (alturas que vão de dois a quase cinco metros), dispostas de maneira a formar uma espécie de labirinto.

Nós não choramos. Não rezamos. Sequer ficamos em silêncio. Eu, minha mãe, meu pai, meu irmão e minha irmã (cunhada) fizemos a mais divertida guerra de bolas de neve que eu já vi. Correndo entre os blocos, cada um por si, não se podia adivinhar de onde viria a próxima bolota – mas ela certamente viria. Cheios de alegria, rindo e sorrindo, nós celebramos a vida. Existe melhor maneira de respeitar a morte que celebrar a vida?

De lá, seguimos para o Checkpoint Charlie. Nesse lugar, na antiga fronteira entre os dois lados da cidade, funcionava um posto militar para a passagem de estrangeiros e membros das forças armadas, da Berlim Ocidental para a Berlim Oriental. As pessoas do lado ocidental tinham o direito de ir e vir, de transitar entre os dois lados, mas as pessoas do lado oriental não tinham esse mesmo direito. A vida seguiu muito dura para os alemães, mesmo com o término da guerra.

No Checkpoint Charlie há um museu sobre a vida dos cidadãos alemães no pós-guerra. É incrível o número de pessoas que morreram ao tentar, desesperadamente, atravessar o Muro de Berlim. Mais incrível, porém, é o número de pessoas que lograram fazer essa travessia, e a forma como conseguiram isso.

Há, em exibição nesse museu, carros modificados para levar pessoas encolhidas sob o capô, malas de viagem utilizadas com o mesmo propósito e até mesmo uma máquina voadora utilizada para cruzar a fronteira pelo céu.

A vida não tem explicação. Seres vivos e coisas inanimadas são feitos da mesma coisa, mas há algo que distingue uns dos outros, algo inexplicável. Não se pode dizer como a vida começou e como vai terminar e, por isso mesmo, há que se respeita-la.

Eu não tinha noção da magnitude da vida. Do valor da vida. Ainda não tenho – mas aprendi que é algo infinitamente maior do que eu, e por isso eu a respeito. Respeito a vida – não só a minha, como a dos meus semelhantes, dos animais, dos insetos, das plantas.

A vida tem que ser estudada, compreendida, preservada e, acima de tudo, celebrada. Isso está bem claro, por toda Berlim, e essa lembrança vou carregar pra sempre comigo.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

017

Buenos Aires, Argentina, 07 de dezembro de 2010

Sentado na mesa da cozinha, de manhãzinha, me conecto no MSN enquanto a água do café esquenta. Meu pai está “online” também, e começamos a conversar:

- Eae, belê? – ele pergunta.

- Fala mané! To arregaçando nesse Pokerstars! Hahaha! – respondo, falando sobre o famoso site de poker.

- Certo... cê tá jogando o que?

- Ah, por enquanto eu tô jogando aquele “cash game” de dinheiro fictício...

- Assim que começa... depois instale o Full Tilt. No site tem a Academia que ensina a fazer as jogadas que os profissionais usam nos torneios!

- Jóia!

- Eae, sua mãe me ligou dizendo que leu um conto seu, e está preocupada com você. Me disse que você deu pra beber até cair... quaiquiaquiaquiauqiauiquaquiaquia!

- Hahahahahahahahaha! A mãe é muito exagerada!

- Eu falei pra ela tomar cuidado com o que você escreve, porque uns são contos e outros crônicas, e fica difícil para o leitor saber quando é um ou outro.

- É, mas isso aí é verdade mesmo, como todo o resto desse site “Minhas Notas de Viagem”. Eu tomei um porre de vinho e vomitei até as tripas!

- Quiaquiaaquiaquiaauiaqauiaaquiaquiaqauia... Porra! Então ela tá certa caraio! Você deu pra beber...

- Ué, vez ou outra não pega nada! Esse foi só o terceiro porre do ano!

- Ih, fodeu... Existe um ditado que diz que, se você fizer uma vez e não mais voltar a fazer, é porque nunca mais vai fazer de novo; mas quando você faz pela segunda vez, tá pego! Ae fodeu! Fará três, quatro, etc... Agora, o que determina se você estará fudido, se nunca vai deixar de ser um alcoólatra, é a forma como resolveu beber:

a) se bebeu para se divertir e tirar um lazer, sabendo o momento certo de parar, ou

b) se bebeu pra esquecer problemas e traumas do passado...

Em qual das alternativas você se encaixa?

- Na primeira, e olhe lá! Encher a cara não é a única forma de tirar um lazer. Vez ou outra dá vontade, mas não para esquecer os problemas. Para esquecer os problemas, eu escrevo.

- E você tem muitos problemas?

- Não! Quis dizer que, quando bate uma tristeza, eu escrevo alguma coisa pra botar pra fora, só isso!

- Ah, entendi! É assim comigo também, mas ultimamente tenho me recusado a escrever, porque não quero mais ficar triste... E a poesia é “fdp”, ela me deixa triste pra me obrigar a escrevê-la. Estou em guerra com a poesia, ela que procure outro pra escrevê-la, ou melhor, para deixá-lo triste...

- Hahahahahaha! Tá certo! Pô, eu acho que você devia escrever umas crônicas/contos. Contar umas histórias, tipo aquela quando você foi na casa do traficante fazer recenceamento!

- Meu, ai eu vou me mijar outra vez! Você quer que os outros que me lerem saibam que eu sou um tremendo bundão?? Quiaquaiquiaquiauquaqiuauqa!

- Hahahahaha! Mas daí você fala que é inventado e tá tudo certo!

- Nem tudo que escrevemos é inventado. A parte principal, o núcleo, geralmente é verdade...Por exemplo: o seu porre eu sabia que era verdade. Agora eu gostaria de saber o porquê do porre...

- Nada de mais, deu vontade de ficar doidão, só isso. Aquele chororô veio porque eu penso muito nessas coisas, daí extravasa um pouco. Mas esse não é o motivo do porre.

- Oquei... Ei, me diga sempre quando você estiver precisando falar sobre algo! Quem sabe podemos escrever a quatro mãos ao conversarmos... Que cê acha? Você falou sobre o chororô, e o que te levou a essa crise de chororô?

- O chororô, naquele dia, foi por causa da segregação racial. Por mais que não exista abertamente, é nítido que acontece.

- Ih, deixa isso pra lá! Na sua idade, e antes dela, eu passei por isso e agora o que faço: ignoro tudo. Tua pele branca não tem nada a ver com a desgraça capitalista que os comerciantes promoveram mundo a fora...

Não foi a pele branca, foi a usura do homem... Veja, na África, negro matou negro da forma mais terrível que se possa imaginar, para reter o poder...Uns queriam o poder e outros também, então saíram assassinando o povo... Essa maldição não é da pele branca, é do próprio homem. Os amarelos se mataram, os negros se mataram, os índios se mataram... Nada a ver com a pele branca, é tudo pelo poder! Portanto, a cor não faz o assassino, e a sim usura pelo poder.

- Verdade. A única diferença é que, no ocidente, o branco se sobressaiu, mas podia ser qualquer um mesmo...

- Resumindo: você não precisa ficar triste com isso. Pense para escrever, e não para sofrer. Outros tantos antes de você já sofreram por isso, e tudo que fizeram para mudar o mundo foi em vão...O melhor que podemos fazer é conviver com isso e não ser parte dos malditos...

- Sim, e escrever sobre o que pensamos para que alguém mais possa ver o que nós vemos!

- Exatamente! Relatar através da escrita para que os novos leiam e façam diferente em seus futuros...

016

São Paulo, Brasil, segundo semestre de 2009

A Escola Técnica de Artes de São Paulo funciona num terreno onde, alguns anos antes, estava o presídio do Carandiru – famoso pelo livro e pelo filme homônimos, que contam a história do famigerado massacre de presos. O prédio onde foi montada a escola, inclusive, é uma parte preservada e reformada do presídio. No mesmo terreno existe o Parque da Juventude, um parque grande e arborizado, com muitas quadras para o lazer das pessoas que vivem ali perto. Um pedaço da muralha do presídio também foi preservado – uma testemunha duma história que não se pode (e nem se deve) esquecer.

Sentado no palco, que fica no piso térreo (um salão amplo e muito iluminado) junto à parede da esquerda (em relação à entrada principal da escola), eu podia ver o teto de vidro lá no alto. O edifício é um caixote onde os andares são como anéis que envolvem um vão enorme, entre teto e chão.

A escola estava tranqüila no horário de almoço. Eu e o Nego tínhamos acabado de escovar os dentes – depois de almoçar no Bom Prato, um restaurante popular que nos cobra R$1 – e estávamos jogando conversa fora.

- Me fala – perguntei – em que posição você ficou no processo seletivo?

- Em sexto! – ele disse, disfarçando seu orgulho.

Nós estudávamos Regência Coral e Orquestral. Éramos colegas de sala, e nos conhecemos durante o curso havia pouco mais de três meses, apenas. Nossa amizade, porém, se desenvolveu e se aprofundou de forma muito rápida.

- Caraca! Desculpa aí, metidão!!

- Nada a ver! E você?

- Eu passei em décimo terceiro!

- Ah! Você também ficou bem colocado! – ele estava sendo gentil.

- É né? Na verdade, eu fiquei surpreso só pelo fato de ter passado!

- Nossa, por quê?

- A, sei lá...eu já tinha tentado tantas vezes, nunca tinha conseguido. Eu já tava pensando que não tinha mais jeito. Se eu não entrasse dessa vez, ia desistir da música...

- Êita...

- Sério! Depois que eu vi o meu nome na lista de aprovados, voltei pra casa chorando que nem um bezerro desmamado, no metrô! Eu ainda acho que só passei na prova porque apresentei uma música minha...

- Você é compositor?

- Mais ou menos, eu tento. Ei – mudei de assunto – eu decidi. Vou viajar pra Europa nesse final de ano. Lembra que a gente tinha conversado sobre isso, que meu irmão queria me dar a viagem de presente?

- Sim. E a Ná?

- Ela não vai...

- Por quê?

- Bom, o motivo “oficial” é o fato dos pais dela estarem voltando do Japão depois de quase cinco anos, e por isso ela quer passar o final de ano com eles. O outro motivo, você já sabe...

- A, mas eu acho que vai ser bom para vocês, esse tempo. Vocês vão poder pensar um pouco na vida, acertar o rumo das coisas...

- É, você tem razão.

sábado, 18 de dezembro de 2010

015

São Paulo, Brasil, segundo semestre de 2009

A atmosfera estava tão carregada de energia negativa que pesava uma tonelada sobre meus ombros cansados e doloridos. Já era noite, mas o céu nublado escondia as estrelas e a lua, como se ninguém quisesse testemunhar aquela cena triste.

A cozinha estava imunda, como toda a casa – e assim esteve o dia todo. A pia suja, a louça suja, o chão sujo. No chão, aliás, ainda estavam os cacos de vidro dos copos que joguei na parede, num acesso de fúria incontrolável.

Sou assim quando perco a cabeça – incontrolável. Fico cego, não vejo nada, não reconheço ninguém. Uma força esmagadora parte do meu abdômen e se espalha por todo meu corpo, tentando sair de alguma forma. Meus músculos ficam rígidos, meus olhos vermelhos, minhas veias saltam por todo o corpo, meu coração acelera e minha cabeça dói.

Lá no fundo do teatro, minha consciência – impotente – pode apenas assistir o desenrolar da tragédia desenvolvida pelos meus atos insanos. Pior que agressão física, eu tenho um talento especial para ferir as pessoas com as palavras. Sou capaz de derrubar qualquer um com as palavras, cortar-lhe a carne e faze-lo sangrar até a morte – até a morte da alma. Me pergunto se todas as pessoas passam por isso.

Sentado na pequena escada de acesso à cozinha de nossa casa, eu chorava desconsoladamente. A Ná não pôde entender o que se passava. Havia alguns instantes eu gritava e gesticulava acintosamente e, de repente, me sentei na escada e comecei a chorar. Eu pensava:

“...isso não está certo. Deus, isso não pode estar certo. Ela está sofrendo demais. Eu estou sofrendo demais. Por mais que ainda a ame, eu não posso continuar com isso. Não podemos seguir brigando e discutindo dessa forma...”

Aquela tinha sido uma briga colossal – uma de tantas outras.

“...eu simplesmente não posso esperar que ela tome uma atitude, que se separe de mim. Eu sei que ela ainda pode suportar muito sofrimento em nome dessa união, mas isso não está certo. As pessoas não deviam sofrer por estar juntas, pelo contrário...”

Eu soluçava tanto que parecia uma convulsão.

“...ela não pode entender o que quero dizer; ela não pode entender o meu lado...”

De fato ela não podia. O que eu não sabia era que eu tampouco podia entender o lado dela. E como ela tinha razão.

“...eu não sei como isso vai acontecer, mas eu quero me separar. Nós vamos nos separar. Deus, por favor, me ajude. Me ajude a me separar dela, para que ela possa seguir sua vida e voltar a ser feliz. Eu confio em você. Muito obrigado.”

Alguns instantes depois a Ná, que também tinha os olhos inchados de tanto chorar, me abraçou e me alentou – ela sempre foi muito generosa. Ela disse:

- Ei, calma. Já passou. Tá tudo bem agora...

Naquele momento o universo começou a preparar nossa separação.

014

Buenos Aires, Argentina, 21 de novembro de 2010.

Abro os olhos e a primeira coisa que vejo é o teto. Nosso quarto é pequeno, tem no máximo 3m por 2m; ao menos o pé direito é bem alto – característica das construções antigas, no estilo europeu, de Buenos Aires.
Saio do quarto em direção ao banheiro. Passo pelo pequeno hall de entrada do apartamento, onde à minha frente está a porta de saída, atrás de mim a porta do meu quarto, ao meu lado direito as portas dos quartos da Yasmin e do Leandro (que o divide com o Filipe) e à minha esquerda, lado a lado, a porta da sala e o corredor que leva ao banheiro, à cozinha e ao quarto das irmãs Tacila e Tamiris.
O apartamento é, talvez, tão antigo quanto Buenos Aires. Penso assim porque está situado na Avenida Rivadavia, uma avenida muito importante onde corre, por baixo, a linha A de metrô (Subte). Essa é a linha mais antiga de Buenos Aires e, por conseqüência, a mais antiga da América do Sul, pois a Argentina foi pioneira na construção de metrô nessa região. Ainda hoje estão em circulação os trens da época da inauguração dessa linha.
Os móveis do apartamento também são antigos, assim como o piso de madeira, as portas, as janelas, os lustres. Tudo isso me encanta de maneira indescritível. Me faz imaginar quando e como viveram pessoas aqui, antes de mim, e sinto que nossa história se enlaça de alguma forma – é como se pudesse sentir a energia dessas pessoas latejando pelas paredes da casa.
No banheiro, lavo o rosto, escovo os dentes e ajeito o cabelo. Ouço as vozes da Yasmin e do Pablo (namorado da Yasmin) vindo da cozinha e, como tenho vontade de “gastar”meu castellano, rapidamente volto ao meu quarto para guardar as coisas de toalete e vou à cozinha.
- Buenos días, Pablo!
- Buenos días!
Eu puxo assunto com o Pablo. Ele e Yasmin estão cozinhando juntos. Ele é cozinheiro, estudou gastronomia e, como a Yasmin sempre fala muito dele, não me falta assunto para começar a conversa. Tenho que fazer muito esforço para falar castellano (e ele para me entender), mas conseguimos manter uma conversação decente.
- Escucha Pablo, a Yasmin me me falou que você cozinha muito bem!
- Ah, não é verdade...
Ele é humilde.
Seguimos conversando sobre comida. Lhe pergunto o que está cozinhando, e ele me responde que está fazendo umas “tortillas”. A mim, se parecem como aquelas esfihas de restaurante árabe, mas as tortillas são feitas de massa folhada, acho. Descontraído, falo para ele fazer um par de tortillas a mais para eu experimentar. Lhe pergunto de que são recheadas e ele me diz que são tortillas de presunto e queijo.
- Demônios, não posso comer!
- Y por quê?
- Eu sou vegetariano!
- Em sério? Bom, não tem problema. Você pode comer dessas que estão recheadas com queijo.
Eu dei sorte. A verdade é que estou com água na boca, pois as tortillas têm um aspecto maravilhoso e as que estão assando cheiram muito bem. A Yasmin, por sua vez, está fazendo um bolo de milho com queijo, que também parece bom.
Por algum motivo, o assunto toma um rumo diferente. Eu pergunto ao Pablo o que fazer para conseguir uma namorada argentina – esse é meu plano para aprender o castellano. O Pablo é muito legal, e gosta de falar. Ele começa a me dar uma série de lições:
1 – As moças argentinas são muito difíceis. Elas nunca vão demonstrar que querem alguma coisa com você, por mais que queiram MUITAS coisas com você.
2 – Você nunca deve demonstrar que está afim de uma moça argentina. Se você disser algo, elas vão te desprezar; mas, se não disser nada, elas se sentirão desprezadas e farão alguma coisa para chamar tua atenção.
3 – Quando estiver paquerando uma moça argentina, não seja muito direto. Fale o que tem que falar por meio de brincadeiras, por entrelinhas. Assim ficará uma espécie de dúvida no ar, o que vai instigá-las ainda mais.
4 - Se quiser chamar atenção de uma moça argentina na rua, num bar, enfim, em qualquer lugar, esteja com uma moça bonita ao seu lado. As mulheres argentinas são muito competitivas nesse sentido e, se te virem com uma mulher bonita, tentarão chamar a tua atenção para “vencer a rival”.
5 – Consiga um cachorrinho, filhote de preferência. Elas adoram os cachorros por aqui.
Falando assim, o Pablo me parece muito experimentado com as mulheres. Falo pra ele que esse comportamento também funciona com as brasileiras e que imagino que as mulheres são iguais em todas as partes do mundo. Damos risada. A eterna guerra entre os sexos é um assunto muito divertido!
As tortillas ficam prontas e todos começamos a comer. Até o Nego, que apareceu do nada como um passe de mágica, come com a gente. De fato estão muito boas as tortillas.
Mais uma troca de assunto sem explicação e começamos a falar de política. Pergunto a Pablo se ele ficou triste com a morte do Kirchner. Ele me fala que não, que não gostava do Kirchner e tampouco do Perón (sob protestos da Yasmin, peronista convicta).
Fico surpreso com as palavras e com a forma que o Pablo fala dos argentinos. Geralmente, os argentinos são nacionalistas ao extremo (como a Yasmin) mas o Pablo não. Ele tece críticas muito coerentes a respeito da situação de país e de seu povo.
Ele se incomoda com o espírito egoísta dos argentinos – sobretudo dos porteños (nativos de Buenos Aires). Ele diz que, aqui, as pessoas sempre tentam tirar vantagem umas das outras, sempre querem ser mais espertas umas que as outras. Enquanto ele fala eu penso que, talvez, as pessoas sejam assim no mundo todo, e por isso estamos como estamos.
Falo para o Pablo que estou surpreso com a maneira de pensar dele; que pensava que todos os argentinos eram super nacionalistas. Falo que as coisas que lia sobre a Argentina, no Brasil, me faziam crer que todos os argentinos amavam a Kirchner e sua esposa Christina.
Ele me diz que não gosta dessa coisa de nacionalismo. Eu lhe falo que não gosto de nada que termine com “ismo” e que, para mim, tudo isso soa como fanatismo, o que não é bom. Ele concorda. Fanatismo nunca é bom. Fanatismo segrega muito mais do que une.
Gosto da nossa conversa. Uma coisa é ler sobre um país e outra, completamente diferente, é falar com os nativos e sentir quais são as suas impressões sobre seu lugar de origem. Por isso mesmo eu sempre me pergunto até que ponto podemos acreditar nos jornais, nos livros, na História...

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

013

São Paulo, Brasil, segundo semestre de 2003.

Em plena primavera, o dia não podia ser mais agradável. O sol estava quase no centro do céu – era quase uma hora da tarde – e fazia calor. A praça tinha uma grama verdinha muito bem cuidada, umas árvores grandes onde alguns canta-ventos tilintavam e muitas flores, de todas as cores.

A Ná estava tão linda quanto o dia. Seus longos cabelos estavam soltos, em suas orelhas havia brincos grandes – daqueles de argola – e seu rosto mestiço (meio brasileiro, meio japonês) exibia um sorriso encantador. Ela vestia uma bata azul celeste e calça jeans.

“Caraca. Isso não é normal. A gente não tem nem seis meses de namoro. Como eu posso amar tanto uma pessoa que eu nem conheço direito? Como eu posso pedir uma coisa dessas pra ela? – pensei.

- ...então, eu trabalho na Seicho-No-Ie desde o começo do ano – a Ná falou.

- Mas o que é, exatamente, a Seicho-No-Ie? – perguntei.

- É tipo uma religião, mas não é exatamente uma religião...

- Como assim?

- O Mestre Masaharu Taniguchi, fundador da Seicho-No-Ie, sempre disse que não se trata de uma religião, mas sim de uma filosofia de vida. A Seicho só tem esse status de religião porque deu um rolo na segunda guerra. Eu não sei exatamente o que houve, mas o governo japonês mandou que o mestre definisse a Seicho como religião – acho que foi isso.

Enquanto ela falava, eu mal podia prestar atenção em suas palavras. Não que eu fosse mal-educado, mas sempre tive um certo desvio de atenção – principalmente quando falo com mulheres bonitas. Naquele dia, porém, minha falta de atenção vinha de certo pedido que eu queria fazer à ela.

- E qual é a dessa filosofia?

- Bom, Seicho-No-Ie significa, em japonês, “lar do progredir infinito”. A idéia do Mestre era auxiliar as pessoas a progredir espiritualmente, para que todos possamos viver bem e felizes. Ele pesquisou muito a fundo quase todas as religiões e descobriu que, na essência, todas elas são iguais...

- Eu sempre pensei algo assim...

- ...e que todas elas pregam o amor ao próximo, e por isso ele sempre fala do cristianismo e do budismo, por exemplo.

- E você, é adepta da Seicho-No-Ie?

- Sim! Eu sou cristã, mas não sou católica nem evangélica.Comecei a ler os livros do Mestre e gostei muito, por isso me tornei adepta.

- E como você conheceu a Seicho?

- Foi por causa da minha mãe. Ela é adepta e faz algumas reuniões com outras adeptas lá em casa.

- Entendo. Eu tenho vontade de ler alguma coisa do Mestre...

- É? Vou te dar um livro dele então. Vou te dar o “Livro dos Jovens”, é muito bom. De fato, o livro é incrível. O li em uma tarde, mas seu conteúdo é pra vida toda.

Interrompemos a conversa para nos beijar um pouco. Não, muito. Apesar de nosso namoro não ter nem seis meses, nós nos gostávamos muito, e há muito tempo. Já éramos melhores amigos desde o ano anterior – 2002 – quando começamos a estudar na mesma classe. Sempre conversávamos muito, e cada vez mais descobríamos pontos em comum. Por isso mesmo eu não tinha dúvidas de que gostaria de fazer aquele pedido. Só faltava um pouco de coragem.

- Sabe o que eu tava pensando? – perguntei.

- Não...

- Sabe, já que você tem o sonho de ser professora, acho que a gente poderia abrir uma escola juntos, o que você acha?

- Uma escola?

- Sim! Veja, eu acho que a educação é a base de tudo. Nós poderíamos ter uma super escola particular, referência de ensino! Dessa forma, a gente ganharia muito dinheiro e teria condições de oferecer bolsas de estudo para os mais pobres...

- Nossa, que idéia excelente! Mas como a gente faria isso?

- A, sei lá. A gente poderia ir pro Japão, trabalhar que nem uns camelos, juntar uma grana e voltar pro Brasil, pra fazer isso...

Ao falar essas últimas palavras, me emocionei um pouco. Lembrei do pedido que queria fazer. A tardezinha já queria virar noite, o movimento de pessoas (que saíam do trabalho e esperavam a hora de entrar na escola) começava a aumentar e a calmaria da praça se esvaia.

- É né? Sabe que eu tenho meus tios e primos no Japão? Eles sempre me falam que lá tem que trabalhar pra caramba, mas o dinheiro vale a pena – para os brasileiros, porque os japoneses não trabalhariam para ganhar o que ganha um brasileiro no Japão, e tampouco fariam o tipo de serviço “sujo e/ou perigoso” que geralmente fica a cargo dos estrangeiros.

- A, eu não me importo em trabalhar tanto por uns 4 anos...

- Mas e a música? Você não pode deixar a música de lado!

- Não vou deixar de lado, vou continuar praticando. A verdade é que eu não vejo como fazer sucesso com a música, sabe? Me parece muito difícil. Talvez seja melhor o lance da escola, é algo mais concreto, que depende só de mim...

- É, talvez. Mas ó, na nossa escola, a gente pode fazer um super departamento de música pra você tomar conta!

- Isso! Fechado!

A gente pensava de forma muito parecida em quase todos os aspectos. A verdade é que, naquela altura do nosso namoro, eu achava que a gente pensava de maneira igual sobre todos os assuntos. Tínhamos muitos sonhos e, mais do que isso, tínhamos uma capacidade incrível de adaptar os sonhos de cada um para construir um sonho único.

Ficamos um tempo calados, olhando um para o outro. Ela estava sentada no meu colo, meio de lado. Eu a abracei e repousei meu rosto no seu colo, naquele espaço acima dos seios e abaixo do pescoço. Podia ouvir as batidas do seu coração. Fiquei ali por uns instantes, pensando no que iria pedir a ela. Não no pedido em si, mas nas implicações do que viria depois do pedido, qualquer que fosse a reação dela. Nem de longe eu poderia imaginar o que se passaria.

Respirei fundo.

Tomei coragem.

Respirei fundo outra vez.

Tomei um pouco mais de coragem.

Ergui minha cabeça e olhei diretamente nos olhos dela. Não podia sentir mais nada naquele momento. Então, finalmente, falei:

- Casa comigo?

...

Silêncio.

...

- Sim. É claro que sim!