São Paulo, Brasil, início do segundo semestre de 2003
Já abri meus olhos estressado: o relógio marcava 7:06.
“Que droga! Outra vez! O que eu vou falar pro chefe hoje?” pensei. Eu deveria estar no trabalho as sete em ponto.
Levantei da cama correndo, vesti a primeira roupa que encontrei – uma calça de tactel preta com uma faixa branca na lateral de cada perna, uma camisa verde do Palmeiras e uma jaqueta enorme e fofinha, dessas impermeáveis, azul com detalhes pretos e cinzas – lavei o rosto e saí de casa sem tomar café da manhã.
Voei até o ponto de ônibus e peguei o primeiro da linha “Brás-Grajaú” que passou, lotado – esse era o único que me levava direto ao Aeroporto de Congonhas, onde eu trabalhava na extinta “Viação Aérea de São Paulo”, a VASP.
“Saco! Esse trânsito terrível de novo! Todo dia isso! Desse jeito eu vou chegar lá só as nove. Isso se não chover...” pensei. De fato, a manhã estava escura, com aquele céu cor de chumbo cheio de nuvens carregadas prontas para alagar a cidade. Estava muito frio também.
Eu fazia um estágio no Laboratório de Metrologia da VASP. Fazia uma espécie de controle de qualidade, ligado à manutenção dos aviões e, por isso mesmo, andava por toda a empresa – com exceção da parte comercial – e conversava com muita gente de diversos setores. Eu gostava muito mais de bater perna do que de ficar no meu próprio setor.
O meu chefe não era uma pessoa muito sociável. Era um chefe à moda antiga, daqueles que botam uma carranca e tentam obter o respeito da equipe através de grito e coação. Eu não gostava dele, e ao que tudo indicava, ele não gostava de mim. Compreensível, uma vez que eu atrasava de duas a três vezes por semana.
“É, hoje não vai ter jeito. O homem vai me dar uma bronca daquelas. Talvez seja melhor eu nem entrar, dar meia volta e ir para casa”. Eu realmente detestava a maneira como o chefe falava comigo. Acho que ninguém gosta de chefe assim – nem mesmo os próprios chefes que agem dessa maneira, talvez até sem notar o próprio comportamento. Dou todo o crédito para o estresse da nossa vida moderna.
Desci do ônibus apressado. Caminhei alguns metros quando passei por uma criança/adolescente de rua, que dormia em frente a uma loja daquela famosa rede de fast food de comida árabe cujo símbolo é um gênio. Magra, suja e mal vestida (na verdade quase não vestia nada) a criança/adolescente tremia de frio.
Caminhei mais alguns metros.
Parei. Pensei. Hesitei.Venci minha hesitação.
Dei meia volta, andei até a criança/adolescente, tirei minha blusa e a cobri.
Gostaria de encontrar palavras para descrever o que senti ao ver a criança/adolescente, ainda dormindo, se encolhendo e se aninhando ao receber o calor da minha blusa – como fazíamos todos nós ao sermos cobertos por nossos pais.
Essa é uma cena que vou levar para o túmulo.
Certamente o calor que me preencheu foi tão intenso quanto o que tomou conta da criança/adolescente.
Enfiei as mãos nos bolsos da calça, colei os braços no corpo e segui caminhando até a VASP, enfrentando apenas o frio – já não me preocupava mais com o meu chefe. É impressionante como a gente se fixa em “problemas” tão mesquinhos em nosso dia-a-dia e simplesmente se esquece das coisas importantes...
Algumas horas depois, durante uma das minhas andanças pela empresa, um senhor me abordou e disse:
- Muito lindo o que você fez hoje de manhã. Parabéns.
Tímido, com vergonha, eu não tinha onde enfiar a cara. Não sabia que alguém havia notado o que se passou. Tudo que pude responder foi um sorriso meio sem graça.
Mais tarde, à noite, antes de entrar no colégio (estava terminando o ensino secundário) eu contei pra Ná o que havia passado, em prantos.
- Robson, o que você fez foi lindo! Por que você está chorando? – ela perguntou.
- Porque eu hesitei Ná. Eu segui caminhando e quase não voltei.
- Mas você voltou. Você venceu a sua hesitação, é isso que importa. A gente sempre hesita, isso é normal. Importante é vencer a hesitação e seguir em frente! – falou a Ná enquanto me abraçava.