sábado, 29 de janeiro de 2011

038

São Paulo, Brasil, início do segundo semestre de 2003

Já abri meus olhos estressado: o relógio marcava 7:06.

“Que droga! Outra vez! O que eu vou falar pro chefe hoje?” pensei. Eu deveria estar no trabalho as sete em ponto.

Levantei da cama correndo, vesti a primeira roupa que encontrei – uma calça de tactel preta com uma faixa branca na lateral de cada perna, uma camisa verde do Palmeiras e uma jaqueta enorme e fofinha, dessas impermeáveis, azul com detalhes pretos e cinzas – lavei o rosto e saí de casa sem tomar café da manhã.

Voei até o ponto de ônibus e peguei o primeiro da linha “Brás-Grajaú” que passou, lotado – esse era o único que me levava direto ao Aeroporto de Congonhas, onde eu trabalhava na extinta “Viação Aérea de São Paulo”, a VASP.

“Saco! Esse trânsito terrível de novo! Todo dia isso! Desse jeito eu vou chegar lá só as nove. Isso se não chover...” pensei. De fato, a manhã estava escura, com aquele céu cor de chumbo cheio de nuvens carregadas prontas para alagar a cidade. Estava muito frio também.

Eu fazia um estágio no Laboratório de Metrologia da VASP. Fazia uma espécie de controle de qualidade, ligado à manutenção dos aviões e, por isso mesmo, andava por toda a empresa – com exceção da parte comercial – e conversava com muita gente de diversos setores. Eu gostava muito mais de bater perna do que de ficar no meu próprio setor.

O meu chefe não era uma pessoa muito sociável. Era um chefe à moda antiga, daqueles que botam uma carranca e tentam obter o respeito da equipe através de grito e coação. Eu não gostava dele, e ao que tudo indicava, ele não gostava de mim. Compreensível, uma vez que eu atrasava de duas a três vezes por semana.

“É, hoje não vai ter jeito. O homem vai me dar uma bronca daquelas. Talvez seja melhor eu nem entrar, dar meia volta e ir para casa”. Eu realmente detestava a maneira como o chefe falava comigo. Acho que ninguém gosta de chefe assim – nem mesmo os próprios chefes que agem dessa maneira, talvez até sem notar o próprio comportamento. Dou todo o crédito para o estresse da nossa vida moderna.

Desci do ônibus apressado. Caminhei alguns metros quando passei por uma criança/adolescente de rua, que dormia em frente a uma loja daquela famosa rede de fast food de comida árabe cujo símbolo é um gênio. Magra, suja e mal vestida (na verdade quase não vestia nada) a criança/adolescente tremia de frio.

Caminhei mais alguns metros.

Parei. Pensei. Hesitei.Venci minha hesitação.

Dei meia volta, andei até a criança/adolescente, tirei minha blusa e a cobri.

Gostaria de encontrar palavras para descrever o que senti ao ver a criança/adolescente, ainda dormindo, se encolhendo e se aninhando ao receber o calor da minha blusa – como fazíamos todos nós ao sermos cobertos por nossos pais.

Essa é uma cena que vou levar para o túmulo.

Certamente o calor que me preencheu foi tão intenso quanto o que tomou conta da criança/adolescente.

Enfiei as mãos nos bolsos da calça, colei os braços no corpo e segui caminhando até a VASP, enfrentando apenas o frio – já não me preocupava mais com o meu chefe. É impressionante como a gente se fixa em “problemas” tão mesquinhos em nosso dia-a-dia e simplesmente se esquece das coisas importantes...

Algumas horas depois, durante uma das minhas andanças pela empresa, um senhor me abordou e disse:

- Muito lindo o que você fez hoje de manhã. Parabéns.

Tímido, com vergonha, eu não tinha onde enfiar a cara. Não sabia que alguém havia notado o que se passou. Tudo que pude responder foi um sorriso meio sem graça.

Mais tarde, à noite, antes de entrar no colégio (estava terminando o ensino secundário) eu contei pra Ná o que havia passado, em prantos.

- Robson, o que você fez foi lindo! Por que você está chorando? – ela perguntou.

- Porque eu hesitei Ná. Eu segui caminhando e quase não voltei.

- Mas você voltou. Você venceu a sua hesitação, é isso que importa. A gente sempre hesita, isso é normal. Importante é vencer a hesitação e seguir em frente! – falou a Ná enquanto me abraçava.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

037

Algum ponto entre Colonia e Montevidéu, Uruguai, 02 de janeiro de 2011

Falta muito pouco para anoitecer – o sol já se pôs. Estamos cogitando armar as barracas de acampamento na beira da estrada para passar a noite, porque ainda não chegamos a nenhum posto de gasolina, e tampouco conseguimos outra carona.

- Aquilo é uma casa abandonada? – pergunta o Nego.

- Sim! Que lhes parece, passamos a noite aí? – pergunta o Leo.

- Mmmmm...fiquem aqui com as coisas que eu vou lá dar uma olhada. – falo.

Não, eu não sou corajoso. Nem estúpido. Certo, talvez um pouco estúpido. A verdade é que eu estou morrendo de medo mas assim mesmo entro na casa. O lugar é pequeno, tem uma sala, um quarto, uma cozinha e um banheiro – todos vazios. Em nenhum dos cômodos há teto, e o chão está coberto de escombros em todo lado. Parece que este local está abandonado há muito tempo.

- Che, aí a gente não pode ficar – falo, ao regressar – porque não há teto, e nem espaço no chão para armar a barraca. Tá tudo cheio de pedregulhos.

- Mmmm, que droga! – fala o Leo.

- Ali tem outra casa, ó – fala o Nego, apontando para uma pequena construção há alguns metros da gente – deixa que eu vou dar uma olhada nela.

Eu não quero deixar, mas o Nego foi tão enfático que não me resta outra escolha. Fico surpreso ao notar que ele, muito mais esperto que eu, pega um pedaço de pau antes de inspecionar a casinha.

- Essa eu acho que dá pra gente ficar – ele fala quando volta – tem teto no quarto, e da pra armar a barraca no chão tranqüilo.

Pegamos nossas cruzes, digo, nossa bagagem, e vamos os três para a casinha. De fato, aqui se pode passar uma noite. Com exceção do pequeno quarto – mede 3 x 3 metros, acho – todos os outros cômodos do lugar estão com o chão repletos de escombros – provavelmente o que sobrou do teto.

- Che, esse quartinho ta bom! Ele tem duas saídas, a janela e a porta. Se alguma coisa acontecer, a gente tem pra onde correr! – fala o Leo.

- É verdade!

- Vou dar uma olhada ao redor da casa pra ver qualéqueé – diz o Nego.

- Eu também – fala o Leo.

Eu fico ali no quartinho arrumando nossas coisas, dando uma limpada no chão cheio de poeira e galhos secos. “Que sorte termos encontrado essa esteira de bambu na beira da estrada, está novinha! Pelo menos não vamos deitar direto no chão. Certeza que Deus nos está cuidando nesse momento. Fica mais fácil acreditar Nele quando a gente aceita que mesmo os sofrimentos são presentes Dele para o nosso crescimento...” penso.

- Ei, tem uma casinha aqui do lado que parece ocupada. Acho que tem alguém vivendo lá – fala o Nego ao voltar.

- Deixa o Leo chegar que a gente pede pra ele ir lá com você. Eu não posso, com esse chinelo. – respondo. Ainda não tinha me dado conta que andei o dia todo com meu par surrado de havaianas.

O Leo volta e lá se vão os dois inspecionar a casa do nosso “vizinho”.

“Minha nossa, olha esse pôr do sol!” penso. O quadro moldado pelas guarnições resistentes da janela antiga é realmente surpreendente: No horizonte, as formas distintas das muitas árvores não são mais que sombras envoltas por uma luz alaranjada que sobe ao céu em degradé, passando por toda a gama de amarelo e vermelho até se transformar num azul clarinho, que por sua vez ascende ao ponto mais alto alcançando um negrume completo.

"Muito obrigado" é tudo o que eu posso dizer, ao contemplar essa paisagem.

- Olha, realmente ta bem arrumadinha a casinha do “vizinho”, mas tem bastante poeira em tudo, acho que ele não aparece faz tempo. – fala o Leo.

- Por aqui também, ó: tem uma fogueira apagada, uma caixa de vinho – no Uruguai, como na Argentina, os vinhos mais baratos são vendidos em caixinhas do tipo “Tetrapack” – e até uma garrafa de cerveja quebrada. – digo.

- Bueno, eu acho que a gente pode passar a noite aqui. A gente faz um rodízio onde dois durmam e o terceiro fique acordado, de vigília. - diz o Leo.

- Concordo! – falo.

- Vamos fazer uma fogueira – diz o Nego.

Ao dizer essas palavras, o Nego sai a caça de galhos secos para a fogueira e eu vou no seu encalço. A noite já tomou conta do lugar, e tudo que posso ver do Nego são seus olhinhos se mexendo e seu sorriso de alegria, como uma criança que está aprontando alguma travessura MUITO proibida. Eu também me sinto assim. Impossível não lembrar da minha infância, quando a gente entrava em casas abandonadas para montar “clubinhos” – um tipo de “sociedade secreta para criança”.

Voltamos com os galhos e o Leo faz a pergunta premiada:

- Vocês têm algo para acender o fogo?

...

...

...

- Hahahahaha! Não! Hahahahahaha! – respondemos o Nego e eu.

O Leo, então, vai para a estrada procurar alguém que nos possa dar fogo. Contra todas as probabilidades ele volta algum tempo depois, com um isqueiro.

- Tem uma parada de ônibus aqui perto, e eu consegui esse isqueiro com um motorista cujo ônibus estava esperando mais alguns passageiros para seguir viagem! – fala empolgado.

Não dá pra duvidar da existência de Deus nessas horas, mesmo que Deus seja conhecido como “Sorte” por algumas pessoas.

Com alguma dificuldade, acendemos uma fogueira no que seria a sala da casinha. Como venta muito, a fogueira pega fogo intensamente, com chamas altas, e por isso mesmo nossos galhos vão acabando muito rapidamente.

Eu acho que em muitos poucos casos, em toda a história do mundo, a estupidez humana salvou um punhado de indivíduos de perigos como insetos e/ou animais venenosos, ou até animais perigosos. Às vezes a burrice, digo, ignorância, é um dom precioso.

Para fugirmos do vento que consumia nossa fogueira, resolvemos levar a fogueira pra dentro do nosso quarto. A nuvem de fumaça que dominou o pequeno cômodo era tão densa que não se poderia enxergar um palmo à frente do próprio nariz, se fosse possível abrir os olhos que lacrimejavam como se eu estivesse cortando uma cebola.

Rindo histericamente, apagamos a fogueira e saímos do quartinho, completamente defumados. Nós e todos os outros seres vivos do lugar – certeza que nada (nem mosquito, nem escorpião, nem cobra) ia nos incomodar aquela noite.

domingo, 23 de janeiro de 2011

036

Colonia del Sacramento, Uruguai, 02 de janeiro de 2011

Difícil foi “dar dedo” a primeira vez.

Agora, na carroceria dessa pick-up eu estou confiante que vamos conseguir chegar em Montevidéu pegando carona. Eu estou muito emocionado. O Nego e o Leo também. O Leo acabou de pegar sua guitarra e está cantando com o Nego. Talvez a gente possa conhecer muitos lugares assim, “de graça”, se tudo der certo.

- Che, que foda! Eu sempre quis fazer isso! – falo.

- Eu também! – diz o Nego.

- Eu também! – diz o Leo.

A distância entre Colonia e Montevidéu é de 170 quilômetros. Esse casal pode nos levar por 20 quilômetros, apenas. Depois teremos que seguir pedindo carona. Como conseguimos essa em menos de 20 minutos “dando dedo”, penso que antes do fim do dia (agora são, talvez, duas da tarde) estaremos em Montevidéu.

Fico observando a paisagem em movimento. O dia está ensolarado, com algumas poucas nuvens branquinhas deslizando pelo céu. A estrada corta campos planos e bem verdinhos, como aqueles que se pode ver viajando pelo interior de São Paulo, ou mesmo pelo interior da Inglaterra. O mundo parece muito igual às vezes.

O carro encosta e a senhora nos avisa que devemos descer ali. Começamos a tirar as mochilas e os violões do carro às pressas, para não atrasar a viagem do casal.

- Che, dá um desses panetones pro casal – falo.

- Tem certeza?

- Sim! Como agradecimento!

O Nego entrega o panetone para a senhora, que nos oferece uma garrafa de cerveja. Aceitamos. Ela nos diz para pega-la na caixa térmica que está na carroceria. Como o Leo não encontra, ela desce para pegar. Aproveita e nos dá uma garrafa de Pepsi também.

- Para amenizar a viagem de vocês! – ela diz.

É impressionante como, ao pensar em cair no mundo desse jeito, a gente quase sempre pensa o pior; que vamos encontrar pessoas más pelo caminho, que vamos ser assaltados e mesmo correr risco de morte. Ou nós três temos muita sorte, ou existem tantas pessoas boas quanto pessoas más no mundo.

- Muchas gracias! – agradecemos antes do casal seguir viagem.

***

Agora sim, eu digo que essas mochilas estão pesadas pra caralho. Depois de uma hora – acho – dando dedo e sem conseguir nenhuma carona, nós começamos a caminhar na beira da estrada com esperança de chegar a algum posto de gasolina e tentar a sorte aí, onde os carros parados sejam mais fáceis de abordar.

O sol ficou mais forte, a bagagem mais incômoda, a boca mais seca. Olhando pra frente, vejo a estrada seguir (ladeada por campos) até tocar o céu, no horizonte. Olhando para traz, idem. Meu humor, por incrível que pareça, ainda está bom. Encarar isso como uma brincadeira ajuda a relaxar.

- Hey! Aquilo é uma miragem? Estou louco já, ou tem um grupo de garotas sentadas na beira da estrada, do lado de lá? – pergunto.

- Sim, me parecem garotas – responde o Leo.

Seguimos caminhando e, quando passamos alguns metros do local onde estão sentadas as garotas, o Leo decide parar e puxar assunto com elas. Nunca é mal tentar descolar companhia.

- Certo, então abre essa cerveja pra mim, deixa as mochilas aqui e vai lá com o Emerson. Convida elas para tomar uma Pepsi!

- Che, você não vai com a gente?

Respondo mostrando o anel de compromisso em meu dedo anelar da mão direita. Ele entende o recado, puxa o Nego e, juntos, vão em direção as moças.

Talvez por estar morto de sede – um talvez com 90% de chances de acerto – eu bebo a cerveja como nunca antes. O sabor está perfeito, suave, sem amargar muito. Essa “Pilsen” uruguaia nem se compara à famosa (e mais barata) “Quilmes” argentina.

Após um breve instante, Nego e Leo regressam. Sozinhos.

- Nossa, todas elas são muito lindas! – fala o Nego.

- Isso eu notei daqui! – respondo. E aí, o que elas estão fazendo aí na beira da estrada, desse jeito?

- Elas nos falaram que estão esperando um ônibus para Colonia. – responde o Leo.

- Sério? Que coisa! Capaz que seja uma armadilha. Estão aí para chamar a atenção de um bando de manés como a gente e nos roubar tudo ahahahaha! – digo.

- Hahahaha. Capaz! Mas elas me pareceram muito legais!

- Isso porque não podem roubar nada da gente, que não tem nada! Hahahaha! E não quiseram tomar a Pepsi?

- Não...

sábado, 22 de janeiro de 2011

035

São Paulo, Brasil.

Sim, aquelas sacolas estavam muito pesadas. É claro que hoje estariam leves, mas naquela época eu ainda era uma criança e por isso digo que estavam pesadas. De qualquer maneira, as levava sem reclamar.

- Ei, me dá umas sacolas aqui – disse o Má.

- Não, pode deixar. – respondi.

- Mas isso tá pesado, me dá uma! – ele insistiu.

Meu mano sempre foi assim. Do jeito dele, sempre esteve ao meu lado fazendo o que pode para aliviar o peso do meu fardo, seja ele qual for.

- Não, é sério, pode deixar...

Não sei dizer qual é a distância entre o supermercado e o apartamento onde morávamos naquela época – ainda que tenha percorrido aquele trajeto inúmeras vezes. O que posso dizer é que nos tomava, no mínimo, vinte minutos de caminhada.

Vinte minutos caminhando com sacolas pesadas era uma grande provação pra mim, mesmo que fosse uma noite agradável, nem muito fria nem muito quente, como geralmente eram as noites que minha mãe nos chamava para ir ao supermercado fazer compras – e carregar sacolas.

- Meu, não precisa ser orgulhoso. Pode me dar uma sacola!

- Não é orgulho. Eu quero levar essas sacolas pra ficar mais forte...

- Mais forte? Hehehe...Então ta...

Talvez eu estivesse mesmo agindo por orgulho. Eu ainda acredito que não, mas descobri que muitas das nossas convicções estão equivocadas, mesmo que nos pareçam corretas. Talvez por isso Nietzsche dizia que o melhor é não ser uma pessoa convicta – ou algo próximo disso. Ando tentando não ter convicções.

Nunca soube o porque disso, mas desde aquela época eu gosto de fazer essas coisas, de me testar, me levar ao limite.

Aquelas sacolas não são mais um peso, uma provação para mim. Isso, porém, não quer dizer muita coisa. É impressionante como a gente nota, às vezes, que nunca é forte o suficiente. Por mais que a gente cresça, parece que só o fazemos para entender que somos muito menores do que gostaríamos.

Bem, eu sou pequeno.

Cheguei em casa, depositei as sacolas no chão da cozinha e fui correndo – com as mãos ainda marcadas pelas sacolas – me juntar ao meu pai que jogava Elifoot 98 (aquele joguinho de computador, onde você é o técnico de uma equipe de futebol) na sala.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

034

Colonia del Sacramento, Uruguai, 02 de janeiro de 2011

São quase cinco horas da madrugada. Como não reservamos nenhum lugar para ficar, estamos esperando um pouco no terminal onde desembarcamos. O terminal se parece com um saguão de aeroporto, mas é infinitamente menor. O Leo e o Nego estão dormindo e eu estou de vigília.

Difícil não pensar na vida com todo esse silêncio e eu, definitivamente, tenho muito o que pensar – sobretudo a respeito desse namoro com a Táta. Não sobre o relacionamento propriamente, mas sobre as conseqüências que essa união pode ter em nossas vidas agora.

Quando eu saí de casa, tinha dezoito anos e minha ex-esposa dezessete. Naquela época, meu namoro com a Ná não era visto com bons olhos e hoje eu entendo o porque. A moça estudava, trabalhava, tinha uma vida relativamente encaminhada até me conhecer. Com o início de nosso relacionamento ela deixou muitas coisas de lado (e eu também) e isso nos causou muito sofrimento.

E agora, com a Táta, tenho medo que a história se repita.

***

Nós estamos caminhando à beira de uma avenida próxima ao terminal, baixo sol ardente, há cinco minutos. As mochilas ainda não estão tão pesadas, mas se continuarmos assim por muito tempo, certamente vão ganhar sobrepeso gradativamente. Não sabemos “exatamente” para onde vamos. Estamos seguindo umas placas que indicam a presença de um camping por perto.

Caminhamos mais dez minutos e chegamos num shopping. Entramos. O Leo procura uma casa de cambio para trocar seus pesos argentinos por pesos uruguaios, e eu procuro um caixa automático para sacar algum dinheiro.

Encontro o caixa, mas não consigo sacar nada. Percebo que estou um tanto estressado – certamente pelo cansaço, pela fome e pela noite sem dormir. O Nego fala alguma coisa e eu começo a discutir com ele – não consigo controlar meu mau humor.

O Leo chega com seus pesos uruguaios e vamos ao supermercado do shopping comprar algo para comer. O choque é grande ao ver os preços nas prateleiras: um refrigerante que custa por volta de quatro pesos argentinos em Buenos Aires, aqui custa quase sessenta pesos uruguaios. Claro que a segunda é uma moeda desvalorizada em relação a primeira, mas mesmo assim a diferença assusta.

Como não temos muito dinheiro, compramos quatro panetones que estão em promoção (dois pelo preço de um) e dois sucos em pó. Saímos do supermercado, vamos para a praça de alimentação e começamos a comer nosso panetone.

***

Estamos novamente na beira da avenida procurando o camping. Decidimos pedir informação e descobrimos que passamos, andamos demais, e agora temos que voltar. Eu estou muito estressado. O Leo e o Nego sugerem pedirmos carona, mas eu discordo. Tenho minhas razões – o que não tenho é motivo para ser tão grosso com eles, como estou sendo agora. Tenho os meus limites e, quando os atinjo, não consigo pensar e me controlar. Melhor mesmo é tentar ficar calado.

Seguimos caminhando e finalmente encontramos o camping. Entramos, pedimos informação e, como o pagamento deve ser feito adiantado, não ficamos. Decidimos caminhar até o centro histórico da cidade – o local turístico – e procurar outro caixa automático onde eu possa sacar o dinheiro necessário.

***

Colonia del Sacramento é uma cidade histórica, fundada na margem uruguaia do Rio de La Plata, que divide Argentina e Uruguai. Durante muito tempo foi disputada por portugueses e espanhóis e, claro, os segundos sagraram-se vencedores. A cidade, porém, ainda carrega influências portuguesas.

Caminhar pelo centro histórico de Colonia é quase como uma viagem no tempo. Há muitas casas e edifícios antigos, e muitas ruas ainda são de paralelepípedos. Mesmo que o estilo colonial esteja misturado à vida moderna, a sensação de viver um pouco do passado desse lugar é maravilhosa.

Depois de conhecer o porto de iates – e de molhar os pés no rio observando a beleza do dia, do lugar e da própria vida – nós andamos a esmo pela cidade sem saber ao certo o que fazer. Estou um pouco menos estressado, mas sigo preocupado com o fato de não haver conseguido sacar dinheiro. Justo quando estou pensando nisso, passamos em frente a um caixa automático.

- Weeeeeeeeeeeee – saio do banco eufórico, saltitante – consegui! Consegui!!

- Sério? Sacou dinheiro? – pergunta o Nego com brilho nos olhos.

- Não – falo, agora totalmente desconsolado.

- Peraí , conseguiu ou não? – pergunta o Nego, preocupado.

- Siiiiiiiiiiiiiiim!!! – respondo, saltitante outra vez.

- Fala sério! Cadê?

Entrego a nota de mil pesos uruguaios para ele. Agora estamos, os três, tranqüilos. O Leo toma a nota em suas mãos para conhecer e depois tira uma foto minha com a “prova da existência divina”.

Sentamos numa praça para descansar um pouco – ainda estamos carregando as duas mochilas e os dois violões para todo lado.

- É, parece que já vimos tudo o que há para ver aqui em Colonia – fala o Leo.

- É, parece que sim...O que você acha? Vamos a Montevideo? – pergunto.

- Mmmm, acho que sim! Seria muito legal! – ele responde.

- O que você acha, Emerson?

- Legal!

- Acho que a gente podia tentar ir de carona, não? – pergunto.

Os dois topam encarar a aventura na mesma hora.

***

De volta ao shopping, decidimos comprar mais panetones – mesmo podendo sacar dinheiro, temos que economizar – e mais suco em pó para comermos antes de seguir viagem.

Vou ao mercado e, ao passar pela confeitaria, não penso duas vezes. Compro um bolo de aniversário para o Nego, que completou 26 anos ontem. Eu teria comprado ontem mesmo, mas por algum motivo a cidade de Buenos Aires não tinha nenhum caixa eletrônico funcionando – pelo menos nenhum que eu conheça – na semana entre natal e ano novo, e por isso estávamos os dois sem dinheiro.

- Espera, Leo, deixa eu fazer primeiro depois a gente conta pra ele – diz o Nego assim que voltei para a praça de alimentação do shopping com os panetones, os sucos e o bolo.

Ele vai até a mesa ao lado e pega uns bifes à milanesa e umas batatas fritas que alguém não quis comer e traz para a nossa mesa. Fico estupefato. Assim mesmo – e para minha própria surpresa – penso antes de começar a falar porcarias.

A verdade é que eu quero passar por isso.

- Che, isso não me incomoda! – falo, pegando os bifes e tirando a casca de farinha e ovo – Eu como a casquinha e as batatas e vocês comem a carne!

Essa é uma das melhores refeições da minha vida – mais que o corpo, está alimentando a minha alma. Não posso explicar, mas dividir essa sobra com eles me faz feliz. Estou conhecendo a humildade. Meus limites. Meus medos. Melhor que isso: os estou enfrentado um por um. O Nego, sem saber, me deu uma lição que vou levar para a vida: orgulho não enche barriga – e barriga não dói uma vez só.

Depois do “almoço”, comemos o bolo. O Nego, ao cortar o primeiro pedaço, faz um pedido que certamente vai se realizar. Assim é a vida: basta desejar, com afinco, e ficar atento para receber dela o que queremos. Claro, mesmo desejando e mesmo estando disponível o que queremos, devemos estender nosso braço e pegar – ficar parado nunca resolveu e nunca vai resolver nada.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

033

Buenos Aires, Argentina, 01 de janeiro de 2011

O Buquebus é um barco muito bonito. Por fora parece uma miniatura de um desses navios enormes de cruzeiro marítimo. A cor predominante é o branco, mas possui alguns traços de azul também. A embarcação tem quatro pisos.

O primeiro mede aproximadamente 170 por 60 metros e leva os carros de alguns passageiros; esse andar se parece com o estacionamento coberto de um shopping center – na verdade o barco me parece um misto de shopping center com avião.

O segundo mede aproximadamente 160 por 60 metros e, na parte onde o acesso é permito aos passageiros, há um pátio enorme que se assemelha com uma praça de alimentação – como num shopping – onde se encontram algumas máquinas de caça-níqueis, umas mesinhas com cadeiras e uma loja com aspecto de livraria, mas que na verdade é um freeshop.

O terceiro mede aproximadamente 150 por 60. Esse se parece com um enorme corredor de shopping center – há, inclusive, um foço onde se pode olhar para o piso abaixo – e nesse corredor estão as poltronas onde acomodam-se os passageiros da classe econômica, iguais as de um avião. Nesse andar existe, numa das extremidades, uma lanchonete; na outra, a classe que está entre a econômica e a primeira.

O quarto mede aproximadamente 140 por 60. Aqui é o convés da embarcação (aqui está a primeira classe, numa nave toda especial construída no ponto mais alto do barco). Impossível não lembrar do Titanic de James Cameron dando uma volta pelos bancos espalhados entre postes de luz, que desafiam a noite que reina soberana no Rio de La Plata.

Nós, o Nego, o Leo e eu, estamos sentados no chão do convés, maravilhados. É nossa primeira viagem de barco, assim como nossa primeira viagem juntos também. Estamos observando o céu estrelado, com o vento soprando forte no rosto. A sensação de liberdade é indescritível.

Tiro o violão da capa e começamos a tocar. Em pouco tempo noto que há mais dois grupos que se animam, pegam seus violões e começam a tocar também. Devido ao ruído do braço, somado ao ruído do vento, somado ao ruído de nossa própria cantoria, não posso ouvir o que eles estão tocando.

Cansados, voltamos para o terceiro piso e nos acomodamos numa das mesinhas próximas à lanchonete, do lado de uma das janelas que formam as paredes do barco. Conversamos um pouco até que o Leo e o Nego começam a dar sinais de cansaço e se render ao sono.

Pego meu caderno, minha caneta e volto para o convés. Impossível não aproveitar esse cenário para escrever algo. A Táta sempre me perguntava como ela iria aparecer no Blog – isso me deixou um pouco nervoso. Estive pensando numa forma de escrever o que se passou com a gente à altura da expectativa dela. Agora, olhando para o céu, me recordo que ela gosta muito da Lua. Acho que tive uma boa inspiração.

Termino o texto, mas não fico satisfeito. O problema não é o texto, que julgo estar fiel aos fatos e poético o suficiente para tentar descrever o que foi aquela noite para mim. O problema é o mesmo que me atormenta desde o início – não consigo tirar da cabeça que esse relacionamento não pode ir adiante.

Começo a sentir frio – a madrugada chegou e trouxe consigo uma queda brusca de temperatura – e resolvo descer para o terceiro piso e tentar dormir um pouco nesta última das três horas (previstas) de viagem.

domingo, 16 de janeiro de 2011

032

Bournemouth, Inglaterra, 07 de agosto de 2010

Bournemouth é uma cidade litorânea que fica no sul da Inglaterra, a duas ou três horas de viagem de trem – se não me falha a memória – de Londres. Como a maioria das cidades costeiras, explora o turismo. Na cidade há muitos hotéis e muitas atrações turísticas como parques, parques de diversão, restaurantes e casas de vídeo-jogos.

A idéia daquela viagem foi do meu irmão. Aquele era meu último fim de semana na Inglaterra – mesmo que eu não soubesse, que ainda não estivesse 100% decidido a voltar. Uma semana antes eu havia pedido para meu irmão adiantar minha passagem de volta, e ele o fez remarcando a mesma para o dia 14 de agosto. Assim mesmo, alguns acontecimentos dos últimos dias me deixaram confuso.

Caminhando pela orla da praia, no calçadão, eu via a minha direita um barranco – a cidade está a alguns metros acima do nível do mar – e a minha esquerda o mar (depois de uma larga faixa de areia). O som das ondas quebrando, o cheiro de água salgada, a brisa “quase-gelada” e o céu negro repleto de estrelas me encantavam, como sempre.

Focando na conversa ao meu lado esquerdo eu podia ouvir o Thiago e o meu irmão falando sobre emprego, imposto, salário, qualidade de vida, etc. Focando na conversa à minha frente eu podia escutar a Bru e a Cibele falando sobre gravidez. A Bru já estava com um barrigão considerável.

Eu, porém, não me fixava em nenhuma das conversas – estava conversando comigo mesmo. Pensando. Por um lado, eu tinha alguns motivos para continuar em Londres. Por outro, eu estava infeliz e voltar pro Brasil me faria muito bem – sobretudo para botar em prática uma série de planos que eu havia feito com o Nego.

Nós havíamos jantado e caminhávamos sem rumo pela praia para botar a conversa em dia. Num dado momento os rapazes começaram a falar sobre um assunto inevitável para pessoas que vivem no exterior:

- Vocês pensam em voltar pro Brasil? – perguntou o Thiago.

- Por enquanto não cara...

- O Luke vai nascer aqui, então? – ele perguntava sobre meu sobrinho, que nasceria em poucos meses.

- Sim. A gente prefere que ele nasça por aqui...

Não ouvi o papo todo, ainda pensava em minha própria situação.

Seguimos andando até que um “abençoado” – que eu não lembro quem foi – desse a idéia de sentarmos um pouco, no pequeno degrau entre o calçadão e a areia. Sentamos de frente para o mar, e atrás da gente havia um pequeno parque de diversões repleto desses jogos de tiro ao alvo onde se ganham ursinhos de pelúcia, dessas naves espaciais ou carros de polícia de brinquedo para crianças pequenas entrarem, e toda essa parafernália luminosa.

- E você cara, o que ta achando de morar aqui na Inglaterra? – perguntou-me o Thiago.

- Na verdade, eu acho que vou embora. – respondi.

- Sério? Por quê? Não gostou?

- Eu não me adaptei muito bem, sei lá, foi muita mudança ao mesmo tempo...

- É, eu sei como é. É foda mesmo. A gente fica assim longe de casa, bate uma depressão do caralho às vezes.

- É. No meu caso é ainda pior, porque você tem a Cibele, o Má tem a Bru... Quando um tá mal o outro dá uma força e tals. Eu, por mais que tenha o Má e a Bru, não é a mesma coisa. Quando eu tô sozinho no meu quarto, na pensão, e bate uma depressão dessas, não tem ninguém para me amparar – aí é foda. É fundo do poço.

- É, eu imagino, deve ser difícil mesmo.

- Mas eu não reclamo não. Foi uma coisa importante que eu precisava viver. Aprendi muito cara. Aproveitei esse tempo para pensar na vida, e descobri muita coisa. Descobri muito sobre mim e muitas coisas que culminaram no fim do meu casamento, por exemplo.

Na verdade, o que eu havia descoberto seriam coisas que mudariam minha maneira de encarar a vida dali por diante.

- Que coisas? Quer dizer, se você puder falar, claro...

- Posso sim, não tenho mais problemas em falar sobre isso. Até acho bom. Então, acho que a coisa mais fundamental que eu descobri é que eu – talvez por estar muito focado no trabalho – não cuidava da minha relação.

- Como assim?

- Primeiro: eu não passava muito tempo com a minha ex-esposa. Eu achava que o fato de estarem os dois na sala, um vendo TV e o outro usando o computador, ou um lendo um livro e o outro jogando vídeo-game, era passar tempo juntos.

- E não é?

- A, sei lá, eu acho que não cara. Passar tempo junto é fazer alguma coisa onde haja interação entre os dois. Eu sempre conversava muito com a Ná antes do casamento. Depois, essas conversas ficaram muito raras e geralmente se limitavam a coisas corriqueiras – e estressantes – como contas a pagar ou casa desarrumada.

Esse, aliás, é outro ponto importante. Usar um pouco do tempo para cozinhar ou limpar a casa é importante – mais do que fazer hora extra para pagar uma viagem ou mesmo para pagar alguém para fazer o serviço de casa. Cozinhar com carinho, ajeitar a própria casa com carinho estimula e reaviva o amor entre o casal. Faz renascer essa vontade que um tinha de cuidar do outro.

Pelo menos no meu caso essas coisas faziam falta, e foram tão determinantes quanto o fato da gente nunca ter planejado nossa vida a dois – começar como nós começamos, por exemplo, morando num quarto-e-cozinha com um salário de R$ 500,00 até que foi romântico, mas foi um equívoco.

- Entendo...mas e aí, você já tá divorciado no papel e tudo?

- Ainda não. Mas a gente vai fazer isso quando eu voltar.

- Você não acha que pode ter volta, o casamento?

- A, sei lá. Eu até voltaria com ela, mas acho muito difícil. Eu tenho me dado conta de muitos erros que cometi, e tenho tentado melhorar nesses aspectos. Ainda não me parece que ela tenha se dado conta dos próprios equívocos, e isso me deixa triste – em parte porque não podemos reatar, se for para viver os mesmos problemas, e em parte porque tenho receio que ela cometa os mesmos erros numa relação futura.

- Entendo...

***

Voltei pra Londres dessa viagem resoluto: iria voltar pro Brasil.

Depois de três meses, eu já me considerava pronto para voltar. Apesar de não haver conseguido fazer o trabalho que meu irmão me deu, ou de não ter feito amigos, ou de ao menos ter aprendido um pouco de inglês, eu não me sentia fracassado. Aprendi muitas outras coisas naquele período.

sábado, 15 de janeiro de 2011

031

Buenos Aires, Argentina, 18 de dezembro de 2010

Meu celular apita quatro vezes num ritmo sincopado, avisando que acaba de chegar uma mensagem de texto. Pego o telefone e leio a mensagem enviada pelo Leo: “hey, minha amiga Eve nos convidou para uma festa que ela vai fazer por estar completando a graduação, vocês querem vir?”

A gente já havia combinado sair à noite, mas iríamos para San Miguel – a cidade onde moram os tios do Leo. Essa mudança, porém, não me incomoda. Consulto o Nego e como sua resposta é positiva, eu mando uma mensagem ao Leo dizendo que sim, que temos vontade de ir à festa da Eve.

Tomo um banho, visto uma roupa decente – a única que veio em nossa bagagem “mochileiro” – calço um sapato do nego – que me aperta um pouco, mas como disse o Gui (a terceira colcheia jazz da Tercina), quando a gente se veste não existe cômodo ou incômodo, e sim “classe” ou falta dela – e espero o Leo chegar para sairmos.

***

Olhando de fora não se parece nada com uma casa noturna. O lugar fica próximo ao Obelisco, região central da cidade e, como não poderia deixar de ser, está num prédio bem antigo.

Chegamos e encontramos uns amigos do Leo do lado de fora – eles estão esperando a Eve para entrar sem pagar nada. Nós fazemos o mesmo. A noite nem está tão fria, mas assim mesmo o Nego começa a esfregar os braços.

- Hey, pára com isso – falo – não se lembra do que disse o Gui? Classe Nego, tenha classe!

Passa um tempo e alguém recebe uma mensagem da Eve, dizendo que vai se atrasar um pouco, mas que a gente pode entrar sem problemas, porque nosso nome está na lista de convidados.

Entramos – não sem antes passar por uma revista, claro.

O lugar é igual a qualquer danceteria no mundo – creio. Essa tem dois ambientes, onde em cada um deles há um enorme salão, um bar, uma sala técnica para o DJ e muitas luzes coloridas e saltitantes. Andamos um pouco e decidimos ficar no ambiente de cima, onde toca música eletrônica e cumbia, um ritmo muito popular entre os porteños (nativos de Buenos Aires).

Eu não me sinto nada a vontade nesse lugar. Nunca fui de sair à noite e tampouco de sair pra dançar. Dificilmente as pessoas acreditam que sou uma pessoa um tanto introvertida, mas essa é a verdade – pelo menos até que me sinta à vontade com o ambiente e/ou com as pessoas, ou a menos que eu esteja brincando.

O Leo e o Nego começam a dançar e não me resta alternativa, tenho que dançar também. Com muita vergonha começo a me arriscar, mexer os pés dando um passinho para cada lado. Me sinto ridículo. Nesse momento noto que alguém não me acha tão ridículo assim.

- Ê negão hein? Já tem mulé olhando pra você! – fala o Nego, quase gritando, para se fazer ouvir em meio a música alta.

- Pra mim?

- Ë, aquela ali ó, perto da escada, falando com uma amiga.

Olho pra onde ele aponta – de maneira nada discreta – e vejo a moça. Ela é muito bonita.

- Ah, se liga! Como você sabe que era pra mim que ela tava olhando?

- Presta atenção, olha pra ela depois que você vai ver. Ela não tira os olhos daqui.

Essa conversa me fez perder o foco na dança e, quando noto, já estou mexendo os ombros. Esse detalhe não passou despercebido para o Nego, que fala pro Leo e os dois começam a tirar sarro da minha cara. Não sei que moral eles têm pra fazer isso, pois o Nego pensa que está numa roda de samba e o Leo, bem, me parece que o Leo está com dor de barriga – segundo ele, está imitando a maneira argentina de dançar a cumbia.

Arrisco uma olhada em direção à moça, que não está mais no mesmo lugar. Fico aliviado por um breve instante, quando noto que ela e a amiga estão mais perto da gente e sim, ela está olhando pra mim.

- Ehê negão, olha onde ela já tá – me cutuca o Nego.

- Só me faltava essa...

- Ela é bonita mesmo hein?

Eu me afasto, vou pro outro lado, mais longe da moça. Não quero dar muita chance pra ela puxar assunto – se é que ela pensa em puxar assunto. Melhor evitar contato.

A gente segue dançando, pulando, fazendo trenzinho. Os amigos do Leo estão cada vez mais “alegres” e, ao notar a maneira como dançam, me sinto cada vez menos ridículo com minha “dança de ombros”.

- Iaí, não vai falar com a moça não? – tenho a impressão que o Nego tá se divertindo às minhas custas.

- Tá louco? Tô fugindo da fulana como o diabo foge da cruz! Você esqueceu que eu tenho namorada?

- Não, é que tá engraçado isso. Nunca pensei que fosse ver você fugindo de mulé, hahaha.

Mudo de lado outra vez, evitando até mesmo os olhares que não param de vir em minha direção.

Em meio a tudo isso, eu não paro de pensar na Táta: “Seria tão bom que ela estivesse aqui comigo. É uma pena que ela tenha voltado pro Brasil. Por um lado eu fico muito feliz que ela esteja com sua família, matando saudades dos amigos e de tudo que ela deixou pra trás nesses meses que viveu em Buenos Aires, mas por outro eu fico triste por estar longe dela...”

O Leo sumiu de repente e, quando me dou conta, o Nego não está mais do meu lado. Para minha surpresa ele está dançando com uma moça. Me sinto um tanto desprotegido, assim, sozinho, e resolvo sentar num canto do salão, quase escondido. Fico ali observando o Nego dançando com a moça, e pensando na Táta.

“Nesse momento ela tá na festa de casamento da prima. Deve estar linda! Capaz que esteja se matando de dançar, se divertindo bastante! Mal posso esperar pra falar com ela e saber como foi!”

O Leo aparece do nada e pergunta:

- Hey, não vai mais dançar?

- Agora não – respondo – estou com medo dessa moça aí, hehe.

- Por que você não dança com ela?

- Porque não, tá doido?

- Não entendo...

- Lembra daquele lance do treinamento de não comer carne? É a mesma coisa!

- Hum...o seu treinamento com a carne eu posso entender, mas com mulher? É só uma dança!

- Não, não é só uma dança...

***

São oito horas da manhã e nós acabamos de chegar em casa. Estamos muito cansados, mas assim mesmo vamos à cozinha porque a fome é maior. Eu passo um café e preparo uns pães com margarina – impossível tomar café aqui e não lembrar da Táta.

- Caramba Nego, tá apaixonado mesmo hein? – fala o Nego.

- Oxi, por quê?

- Nem foi pra cima daquela moça. E ela era gata hein?

- Eu tô apaixonado sim, mas não foi nem por isso. Seria hipocrisia dizer que não achei a moça bonita e que não ficaria com ela. De fato eu já traí algumas ex-namoradas mesmo estando apaixonado por elas. Não me orgulho nada disso e aprendi a lição. Eu tenho um compromisso com a Táta, não seria certo me render a um desejo momentâneo e estragar isso que pode ser uma relação muito linda...

- Ó, você ta de parabéns hein? Se te conheço bem, mulé é teu ponto fraco, e você resistiu. Tá apaixonado!

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

030

Londres, Inglaterra, 06 de agosto de 2010

De:

"robson ribeiro"

Para:

"emerson rosa"

Maninho, eu vou direto ao ponto: algumas coisas mudaram por aqui. Surgiu uma nova possibilidade pra que eu tente ficar mais um pouco na Inglaterra. Tenta segurar esse coração Nego, leia o email até o fim (DEVAGAR), e leia de novo várias vezes antes de me responder, porque eu preciso da sua ajuda pra decidir – A PASSAGEM DE VOLTA CONTINUA MARCADA PRO DIA 14 DE AGOSTO!

Eu sou uma pessoa que acredita MUITO em Deus, estou sempre pedindo pra que Ele me envie sinais, me ajude a enxergar qual caminho devo seguir em minha vida. Foi por isso que eu decidi vir à Londres, passar um tempo por aqui.

Antes de vir pra cá eu estava numa fase muito difícil, sem saber o que fazer da vida. Lembra quando eu ia na Catedral da Sé pra rezar? Eu estava sempre pedindo orientação pra Deus. Eu dizia: “Deus, eu não sei o que fazer da vida. Mas eu quero fazer algo grande. EU PRECISO AJUDAR AS PESSOAS. Por favor, me mostre o caminho”. Então uma série de fatos surgiram e me trouxeram pra cá. Tenho certeza que isso foi obra de Deus, me mostrando meu caminho.

Quando cheguei aqui, conversei com meu irmão, falei que estava perdido. Ele se ofereceu pra me ensinar a profissão dele (Web Developer), pois era a única forma que ele poderia me ajudar. Como você deve lembrar, naquela época eu tava 90% fora da música, então pensei que deveria mesmo aprender uma profissão nova, e aceitei a oferta do meu irmão.

Mas eu não aguentei a pressão, fiquei muito triste aqui. Quero te explicar isso em detalhes:

1 – O choque inicial é realmente opressor: de repente você está num lugar estranho, rodeado por pessoas estranhas, com costumes estranhos e que falam uma língua diferente da sua. E o pior, você sabe que este NÃO É O SEU PAÍS, então pensa que ninguém te quer por aqui, que ninguém dá a mínima pra te ajudar. Por isso você se isola das pessoas.

2 – Eu estava numa casa feia, num quarto muito pequeno, com gente estrangeira. As pessoas que moram lá são ótimas pessoas, eu é que não conversava com ninguém (e como poderia, sem saber inglês direito?). E o pior: não sentia que aquele era o meu lugar. Por isso ficava preso no meu quarto e tinha receio até de usar a cozinha pra fazer minha comida. Claro que o fato d'eu estar fragilizado devido ao choque inicial ajudou a não me sentir bem naquela casa.

Então Deus me enviou (através do meu irmão) aquele livro, “Os Segredos da Mente Milionária”. Aquele livro era o elo que faltava para que eu pudesse acreditar no meu potencial. Como você sabe, aquele livro me trouxe de volta pra música mais forte do que nunca. Decidi que seria um artista famoso, POIS ESSE É UM CAMINHO PRA AJUDAR MUITAS PESSOAS, usando a fama para propósitos como arrecadar doações para projetos filantrópicos, por exemplo.

Não quero ser um artista famoso por vaidade. O meu objetivo final de vida não acaba quando eu virar um artista, na verdade ele começa! Meu verdadeiro objetivo é AJUDAR AS PESSOAS! Pessoas que passam fome, frio. Pessoas que não têm um lar, que não têm ninguém.

Passei a estudar muito (isso foi na época que eu estava sozinho na casa do meu irmão, enquanto ele esteve no Brasil), e conseguir ótimos resultados (com a sua ajuda, claro!). Com esse sopro novo eu consegui suportar minha tristeza.

Mas quando meu irmão voltou do Brasil, eu tive que voltar pra'quela casa e lá eu não podia soltar a voz porque tinha receio de incomodar os outros, e cantar é minha PRIORIDADE nesse momento. Então revolvi voltar pro Brasil.

Foi quando você me recebeu de braços abertos e começamos a sonhar com a nossa escola. Isso foi incrível! Só Deus sabe o quanto fiquei – e ainda estou – feliz e empolgado com a idéia. Mas, como eu disse no começo do email, algumas coisas mudaram. Deus me enviou alguns sinais, e eu quero dividi-los com você.

Conversando com a Dani algumas semanas atrás a respeito da minha dificuldade com o inglês, ela me disse que não importa falar certo ou errado. O que importa mesmo é a comunicação acontecer. Ela fala inglês e faz Letras, então é muito sabida nesse área. O meu irmão disse quase a mesma coisa: ele falou que Londres é uma cidade cheia de estrangeiros aprendendo o inglês, então ninguém te olha torto ou tira sarro.

Com base na opinião deles eu comecei a estudar inglês e tentar fazer amizades. Conheci ótimas pessoas que estão dispostas a me ajudar com o inglês – e aprender inglês é fundamental pro que eu quero fazer da vida! Acho que isso é um sinal de Deus dizendo pra que eu fique aqui mais um pouco e aprenda inglês. Se eu falar inglês, vou poder escrever e cantar em inglês. Dessa forma, serei um artista ainda mais famoso e como consequência PODEREI AJUDAR AINDA MAIS PESSOAS!

Quando vim pra cá, aprendi que o mundo é mesmo MUITO PEQUENO! NÃO É IMPOSSÍVEL ajudar as pessoas da África, ou do Oriente Médio, ou da América Latina, por exemplo. Desde que você seja a pessoa certa, no lugar certo, na hora certa, fazendo a coisa certa. Eu sei que posso cumprir estes requisitos!

A outra coisa não tem a ver comigo.

Meu irmão e minha cunhada precisam da minha ajuda por aqui. Minha cunhada tá cada vez mais debilitada por causa da gravidez, e meu irmão trabalha muito. Então coisas como arrumar a casa, lavar a louça, fazer a comida, ir ao mercado são tarefas que eu posso – e devo – fazer pra aliviar um pouco pra eles.

Mas, como eu falei, eu estou super empolgado com o nosso projeto! Não quero desistir dele! Por isso escrevi isso tudo: preciso que você me ajude a decidir se devo ficar mais um pouco por aqui ou se devo voltar agora. Mesmo por aqui, eu posso fazer algumas coisas pra ajudar, como a parte de textos e contratos, a parte de organização/administração, e montar o nosso site!

Um grande abraço de quebrar os ossos e um beijo nessa testa cabeçuda!

Amo vc maninho!

domingo, 9 de janeiro de 2011

029

Buenos Aires, 16 de dezembro de 2010

Eu já vi muitas coisas. Sim, posso dizer sem nenhum exagero que já vi de tudo, desde que fui criada e colocada aqui no céu, solitária, com todas essas estrelas e planetas ao redor.

Mesmo tendo visto tantas coisas, mesmo sendo tão experimentada, agora eu fico emocionada. Agora, eu estou testemunhando a coisa mais bela que os seres humanos são capazes de fazer: amar.

Pela janela aberta do apartamento eu posso observar tudo o que se passa. Meus raios de luz adentram a sala escura timidamente, o suficiente para dar um leve toque romântico à cena.

Eu sou assim mesmo, uma romântica incorrigível – talvez por isso os apaixonados sempre recorram a mim quando estão longe da pessoa amada. Às vezes me pedem para enviar mensagens, às vezes me pedem para mandar beijos e/ou abraços e, às vezes, limitam-se a me olhar buscando o rosto de sua outra metade.

Agora, porém, eu sou mera expectadora dos acontecimentos. As duas partes formam, nesse momento, o todo, em sua última noite juntos – mesmo que não saibam disso, ou que não queiram acreditar. Às vezes é triste conhecer presente, passado e futuro.

A sala do apartamento antigo onde moram não é muito grande, mede aproximadamente três por cinco metros, com pé direito de quase cinco metros. Mas, assim à meia-luz, parece um pouco maior.

Os móveis são antigos. Da janela da sala, de onde observo a cena, posso ver na parede norte uma estante onde fica o televisor; na parede leste um pequeno móvel onde está o computador, e uma porta de acesso ao cômodo; na parede oeste outra porta; e na parede sul (a mesma da janela) um sofá e uma poltrona, dessas que viram uma espécie de cama. Nesta última está deitado o casal.

O rapaz está deitado com suas costas no encosto da poltrona, e a moça está deitada em seus braços, com a cabeça em seu peito, pouco abaixo de seu pescoço.

- Táta, tá dormindo? – ele pergunta, num sussurro.

- Mmmmm, ainda não. Não quero dormir, quero aproveitar essa noite. – diz ela com a voz pastosa de quem luta contra o próprio sono.

Um filme sobre esses poucos dias que estiveram juntos passa na cabeça do rapaz. Foi tudo tão rápido. Foi tudo tão de repente. Um dia ele simplesmente se deu conta que precisava estar com a moça e, então, estava feito. Essas coisas do coração eu nunca pude entender.

Ele segue acariciando o cabelo da moça, se esforçando para tirar o peso de sua mão e toca-la suavemente. Isso, porém, está cada vez mais difícil porque exige concentração – e ele não pode mais se concentrar. Uma dúvida o deixa inquieto.

“Eu quero falar. Não que eu precise falar, mas eu quero falar. Eu quero que ela saiba, mesmo que essa seja nossa última noite juntos”.

Ao pensar na possibilidade de falar à moça algo que lhe esteve preso na garganta por todo o dia, o rapaz ficou nervoso.

“Estranho. Depois desse tempo todo eu pensei que jamais voltaria a sentir esse nervosismo ao dizer essas palavras para uma mulher” – ele pensa.

A noite está com uma temperatura agradável, na casa dos 25 graus, mas o rapaz sente muito calor. Seus pensamentos lhe renderam uma boa dose de adrenalina, que lhe acelerou o coração e aumentou o ritmo de seu fluxo sanguíneo, elevando sua temperatura corporal.

Ao notar isso ele tenta se acalmar. Ele ajusta sua respiração à da moça, sentindo-lhe o movimento do peito e, por um instante, tem a sensação de que seu coração é uno com o dela.

“E se ela não acreditar em mim? Se ela pensar que estou dizendo isso por ‘querer algo mais’? Se achar que digo isso a todas as mulheres?”

Ao pensar essas coisas, sua respiração e seu coração, descompassados novamente, perdem-se dos da moça. Ao notar que não vai ficar tranqüilo enquanto não falar o que tem a dizer, ele decide falar.

Ele pensa nas palavras, respira fundo, toma ar e...as palavras se perdem em sua boca, enquanto outro pensamento lhe toma a mente:

“E se ela não acreditar em mim? Se achar exagerado tudo isso, afinal nós namoramos há apenas sete dias...Se achar que eu não sei o que é amar?”

Passam alguns segundos e ele se prepara para uma nova tentativa. Ele respira fundo e...as palavras param em sua garganta.

“E se ela não acreditar em mim? E se ela pensar que...”

- Fala – diz a moça, interrompendo os pensamentos do rapaz.

“Como ela sabe que estou tentando falar alguma coisa? O que eu faço agora? O que eu digo?” – pensa.

O coração do rapaz bate agora tão descompassado que parece querer falar, ele mesmo, o que se passa consigo e acabar logo com essa agonia.

“Quer saber? Não importa. Não importa o que ela vai pensar. Importante é sentir-me assim, feliz. Importante é que ela saiba o quanto me faz feliz.

Esse lance de dizer ou não essas palavras é muito supervalorizado e subestimado ao mesmo tempo. As pessoas perdem tempo pensando se o sentimento é ou não real; se é ou não verdadeiro. As pessoas têm medo de estarem equivocadas, de que tudo isso se perca algum tempo depois.

E se esse relacionamento acabar em dois ou três meses, ou em um ou dois anos, isso realmente importa alguma coisa? Não seria melhor, então, que esse tempo fosse vivido de maneira intensa e verdadeira, sem tantos medos e dúvidas?

Superestimar essas palavras escolhendo dia e hora para falar, esperando uma prova que as mereça é subestimar o valor e o poder que essas palavras têm sobre quem as escuta. É subestimar a própria razão de ser desse sentimento.

Existem pais que nunca as falaram a seus filhos e filhos que nunca as falaram a seus pais. Existem irmãos que nunca as falaram uns para os outros. Parentes que nunca as falaram uns para os outros. Amigos que nunca as falaram uns para os outros. Casais que nunca as falaram uns para os outros. E por quê?

Eu não vou perder mais tempo, se tempo é exatamente o que nós não temos nesse momento”.

Dessa vez não há ritual. Ele não precisa se preparar para falar. Agora está, finalmente, tranqüilo. Seguro.

Ele leva sua boca ao ouvido da moça e...fala baixinho:

- Eu te amo.

sábado, 8 de janeiro de 2011

028

Londres, Inglaterra, primeira semana de janeiro de 2010

Ealing, segundo meu irmão, é um dos bairros mais antigos de Londres. Saber disso me deixa maravilhado. De fato, esse bairro é o próprio estereótipo da arquitetura londrina: ruas estreitas, um monte de casas idênticas, de dois andares, feitas de tijolinho de barro e telhados num ângulo aproximado de 60 graus, todas com um pequeno jardim na frente e só algumas com garagem.

As ruas são estreitas (como em toda a cidade) e talvez por isso poucos carros transitam pelas vias. Tenho a impressão de que o metrô de Londres é tão extenso e desenvolvido por pura falta de opção – é praticamente impossível andar de carro por aqui, em parte por não caber nas ruas e em parte por não haver lugar onde estacionar.

O “flat” onde morava meu irmão era um “pedaço” de uma dessas “casas padrão” – é muito comum os proprietários dividirem essas casas antigas e grandes em pequenos flats para ganhar um pouco mais no valor final do aluguel. Pequenos mas nem tanto, pois esse – por exemplo – tinha dois quartos, banheiro, cozinha e uma área externa nos fundos.

Nós estávamos na cozinha/sala – o mesmo ambiente era dividido dessa forma: de um lado a cozinha, com geladeira, fogão e armários, e do outro a sala, com sofá, televisão e vídeo-games, MUITOS vídeo-games – tentando definir para onde iríamos, que lugar da capital inglesa visitar, quando o meu irmão olhou as horas e nos disse:

- Ó, vocês vão pensando aí no que querem fazer enquanto eu preparo alguma coisa pra Bru comer quando chegar do trabalho...

Foi nesse momento que eu vi com muita clareza um dos motivos – talvez o mais importante deles - do fim do meu casamento.

***

São Paulo (Guarulhos), Brasil, 11 de maio de 2010

Tomar aquela decisão foi uma tentativa de encontrar um novo rumo pra minha vida. Em pouco mais de 6 meses, tudo o que eu tinha planejado, lutado e acreditado nos últimos 4 anos se desfez como um castelo de areia numa tempestade num deserto.

Minha vida profissional se foi com minha escola de música quando eu e minha ex-esposa a fechamos. Eu simplesmente não tinha o que fazer, com o que trabalhar. Eu até poderia arrumar um emprego de qualquer coisa, mas isso implicaria desistir da carreira musical.

Esse fator profissional teria sido facilmente superado, não fosse um “pequeno detalhe”: com o fim da escola de música veio também o fim do meu casamento – e o fim do apoio que a Ná sempre me deu. Fechar a escola não foi fator determinante para o fim do casamento, mas tudo aconteceu ao mesmo tempo. Minha vida mudou da água pro vinho sem emprego e sem esposa.

- Nego, meu irmão me fez um convite... – comecei a conversa com o Nego, naquele dia no Parque do Ibirapuera (São Paulo, SP).

Não era um convite fácil de aceitar. Aceitar esse convite implicava largar a ETEC de Artes e o Conservatório Municipal de Guarulhos. Aceitar esse convite implicava dar o último golpe, aquele de misericórdia, no meu sonho. Aceitar esse convite era perder a última coisa importante da minha vida até então: depois da escola de música, depois da esposa, o sonho.

- Nego, lembra do convite do meu irmão? Eu aceitei. – o Nego não ficou surpreso, quando lhe dei a notícia alguns dias depois, na escola.

- É, eu já esperava... – ele disse.

Trancar meu curso na ETEC de Artes me levou à lona outra vez naquele semestre e, mesmo que não tivesse me dado conta naquele momento, eu não levantaria tão cedo – talvez não levantasse antes da contagem acabar.

O aeroporto de Guarulhos já era um lugar familiar pra mim. Assim mesmo me deixava um tanto desconfortável naquele 11 de maio de 2010. Ferido e com um sentimento de derrota do tamanho do planeta, eu ainda procurava forças para reconfortar minha mãe, meu pai, o Nego e a Dani, que me acompanhavam naquele dia.

Até então nós acreditávamos que eu estava indo para Londres para não voltar mais (ou pelo menos ficar alguns anos por lá). O plano era chegar, trabalhar com o meu irmão e fazer os trâmites para obter um visto de estudante ou de familiar dependente financeiro.

Minha intenção era “crescer”, deixar de lado esse sonho infantil de carreira musical e encarar a vida como se deve: trabalhando para viver e vivendo para trabalhar, como todo mundo. “Crescer” e construir alguma coisa sólida, concreta, que pudesse resistir a qualquer tempestade.

No saguão movimentado, apinhado de gente de todas as caras, cores, credos e idiomas ninguém parecia notar nosso choro – assim como nós não podíamos notar o choro alheio.

- Vai com Deus, filho – disse minha mãe.

- Boa sorte, mané! – falou meu pai.

E assim, eles deram as costas e se foram. Só quando meus pais partiram eu permiti que meu choro se tornasse lágrimas. Essa minha mania de me fazer forte vai me matar um dia.

Ainda faltavam algumas horas para minha partida, então o Nego e a Dani esperaram mais um pouco. A gente ficou conversando aleatoriamente, mas nenhum dos três podia, de fato, prestar atenção na conversa. Volta e meia um dos três deixava transparecer sua emoção pela despedida.

E o momento chegou.

Caminhamos até o portão de embarque.

Eu peguei a fila e, quando passei por eles, lhes dei um último abraço.

Choramos.

Segui adiante.

***

Depois de uma longa viagem – tive que esperar pouco mais de 9 horas em Porto (Portugal) por conta de um vôo perdido na conexão – eu avistei Londres pela janela do avião. Estava linda, desafiando o negrume da noite com aquela porção de pontinhos luminosos.

O avião pareceu adivinhar meu desejo quando arremeteu a aterrissagem. Na segunda tentativa, porém, tocamos o solo. Estava feito. Juntei minhas coisas e me preparei para o desembarque.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

027

Buenos Aires, Argentina, 13 de dezembro de 2010

A noite está muito agradável e a Plaza de Mayo está apinhada de gente. Nós mal avistamos a Casa Rosada ao longe e começa a grande queima de fogos. Eles estão comemorando alguma coisa; esse, provavelmente é um evento do governo, porque do contrário não haveria esse clima de festa. É muito comum haver manifestações políticas contra o governo em frente à sua sede, ou enfrente ao Congresso, que fica próximo daqui.

Muito se fala que o brasileiro faz festa por tudo, tem feriado pra tudo e por isso não trabalha, não leva o país pra frente. Eu arrisco dizer que o argentino faz o mesmo, mas em vez de festejar, fica fazendo manifestações contra ou a favor de alguma coisa. E não é raro que tais manifestações aconteçam numa sexta-feira.

- Che, o que está acontecendo? – pergunto ao Leo.

- Sei lá – ele responde.

Nós acompanhamos a queima de fogos até o final e, para nossa surpresa, as pessoas começam a deixar o local com o fim da queima.

- Acho que a gente chegou no fim da festa – digo.

- Eu também! – ele concorda.

Ele rapidamente retoma o assunto de que falávamos quando chegamos no local:

- Então, como vai chamar a banda?

- Ixi, não sei. Você tem algo em mente?

- Eu gosto do nome “Orexis”.

- Orexis? O que significa?

- Bueno, é algo como “Desejo”.

- Dale! Pra mim tá bom. E pra você, Emerson?

- Bom...

O Leo pega seu celular, olha a data e fala:

- Bueno, então em 13 de dezembro nós fundamos oficialmente nossa banda, chamada Orexis!

- Dale! – digo!

- Dale! – diz o Nego.

Seguimos o fluxo e saímos da Plaza de Mayo, pela Avenida de Mayo. Como não há mais Subte (como é chamado o metrô aqui) essa hora, nós voltamos para casa caminhando e jogando conversa fora.

- Olha Leo, que mina feia! Olha que bunda grande! – digo, de maneira nada discreta.

- Robson, você não pode falar assim, tão alto. As garotas podem escutar você! E depois, você está falando castellano, elas podem te entender! – o Leo me chama atenção para minha falta de discrição pela enésima vez.

- Dale, desculpa Leo. Mas olha, ela é muito feia...

- Che, não fala feia! Essa palavra é muito ofensiva!

- Dale, dale!

- Bueno, e como se fala "tracero" em português?

- Se pode falar traseiro, mas a gente usa mais a palavra bunda!

- Bunnnnnda? – repete o Leo, para memorizar.

- Sim, bunda!

- Dale! A gente podia falar dessas coisas em português já que você não consegue se conter e falar baixo...

- Sim, acho que sim...

- Eu também acho – fala o Nego, que mesmo me acompanhando há pouco mais de um ano, ainda não se acostumou com essa minha falta de discrição ao falar dos outros, na rua.

Seguimos pela avenida, que agora mudou de nome e se tornou Avenida Rivadavia. Sopra uma brisa muito agradável, e se pode sentir aquele cheiro típico que denuncia uma chuva vindoura.

Chegamos em frente ao nosso prédio e eu convido o Leo para subir. No apartamento, silencioso por estarem todos dormindo, começamos a conversar de coisas um pouco mais “sérias”.

- Bueno, e por que você é vegetariano? – me pergunta o Leo.

- Eu estou fazendo uma espécie de "treinamento"..."treinamento" tá certo?

- "Entrenamento".

- Dale, valeu! Bom, eu estou fazendo uma espécie de "entrenamento" para controlar meus desejos. Eu tenho muita vontade de fazer trabalhos "filantrópicos"..."filantrópicos", tá certo?

- Sim, tá certo.

Essa é a dinâmica dos nossos diálogos. Eu vou arriscando e quando tenho alguma dúvida, pergunto ao Leo se determinada palavra existe, ou se estou conjugando certo algum verbo. Ele costuma me corrigir mesmo quando eu não pergunto. O Leo tem nos ensinado muito, lhe sou grato por isso.

- Dale! Então, é por isso. É como um treinamento para que eu possa domar os meus desejos e não me tornar corrupto. Isso é algo que me preocupa desde que notei que mesmo as pessoas boas se corrompem diante do poder...

- Dale che, é uma coisa boa isso que você está fazendo!

O Leo ainda não nos falou abertamente sobre seus planos, mas eu posso sentir que ele tem desejos parecidos com os meus – desejos de fazer alguma coisa pelas pessoas, de tornar o mundo um lugar melhor.

- Eu também tenho vontade de fazer uma viagem pegando carona... - falo.

- Espera, o que é "carona"? - ele pergunta.

- É quando a gente faz uma viagem de carro ou caminhão sem pagar nada.

- Ah, dale. Aqui a gente chama isso de “viajar dando dedo” – ele fala fazendo o gesto característico, com polegar empinado, de quem pede carona.

- Bueno, eu tenho vontade de viajar sem dinheiro, só para viver algumas dificuldades e me tornar uma pessoa melhor, dar mais valor pras coisas e tals...

- Eu também tenho vontade de fazer esse tipo de coisa. Mas me fala, por que tantos treinamentos assim?

- Eu sempre quis entender porque nosso mundo tem tanta injustiça, tanta pobreza. Eu acreditava que a solução era uma revolução para fazer comunismo, mas um primo me mostrou uns livros como “A Revolução dos Bichos” e "1984", os dois de George Orwell, e outro chamado “Cisnes Selvagens” que falam, basicamente, das coisas más do comunismo e por isso percebi que não é a forma de governo, e sim nossa forma de ser que devemos mudar...