Buenos Aires, Argentina, 19 de janeiro de 2011.
O sol vai revelando, por detrás das nuvens, um dia cinza e chuvoso. Estamos sentados perto de uma guarita, à margem do Río de
- ... e daí chegou um guarda e me disse que eu não poderia ficar ali, que eles estavam fechando o terminal da Buquebus. – fala o Nego.
- Nossa! E aí, o que você fez? – pergunto.
- Eu peguei todas as malas me sentei ali do outro lado do rio.
Nossas malas estão realmente pesadas. Não consigo imaginar como o Nego pôde carregá-las sozinho, junto com o violão e com o cajón (instrumento de percussão de origem peruana).
- E porque você veio pra esse lado?
- Eu tava sentado naquele banco, vê? – me pergunta o Nego apontando um lugar na outra margem.
- Sim...
- Então, eu tava sentado lá quando chegou um cara mal encarado me pedindo alguma coisa. Eu disse que não tinha, então ele resolveu me assaltar! Apareceram mais uns caras e juntou um monte ao meu redor...
- Caramba! E o que eles levaram? – pergunto olhando ao redor procurando a Guria (como se chama meu violão).
- Eles não levaram nada! Eu comecei a gritar e pedir ajuda pra uns guardinhas que, depois de afugentar os bandidos, me falaram pra ficar sentado aqui perto dessa guarita...
- A tá, entendo... E você carregou tudo sozinho de novo?!
- Pois é... E como foi lá, com a Flori?
- Foi legal...
Falo com detalhes sobre a noite que passei com Flori, também à margem do rio, até que nos levantamos e vamos para a pensão onde vive Leo. O plano é ficar na casa dele por um ou dois dias, até encontrar um lugar decente pra ficar. A gente não pode voltar para o mesmo apartamento de onde estávamos antes, pois o quarto onde vivíamos já está alugado.
Chegamos ao prédio onde o Leo vive e resolvemos esperar um pouco para chamá-lo, pois ainda é cedo, sete e meia da manhã. Sentados na escada do prédio, acariciando um gato que sabe Deus de onde veio, a gente conversa:
- ...então, assim que a gente conseguir um lugar pra ficar, eu vou naquele bar que a Regina nos indicou pra pedir emprego – fala o Nego.
- É uma boa. Tem um site de empregos que a Guria me indicou, a gente pode procurar alguma coisa nele também.
Passa algum tempo e o zelador do prédio pede pra gente sair, pois ele vai lavar a escada. A gente pega as coisas e se acomoda na frente do edifício.
Começa a chover.
- Eu vou lá acordar o Leo, a gente não pode ficar aqui tomando chuva – fala o Nego.
- Tá, eu fico aqui com as coisas – falo.
O Nego sobe e, alguns minutos depois, volta pra me ajudar a levar as coisas pro quarto de pensão onde vive o Leo.
- O teu irmão peruano tá com uma cara feia – ele fala.
- Também né? Ninguém merece ser acordado a essa hora da manhã...
Subimos com as coisas para o quarto do Leo que não nos recebe muito bem. Acho que, como eu, ele também não é muito sociável quando acaba de acordar. De cara nos fala que não podemos ficar com ele porque a dona da pensão não aceita visitas, e que teremos que pagar para ficar ali.
- Tudo bem, não tem problema. A gente pode deixar as coisas aqui até conseguir um lugar pra ficar? Acho que a gente acha algo hoje mesmo... – pergunto.
- Sim... – responde o Leo, com poucas palavras.
Pegamos uma mochila pequena com algumas coisas, como o computador do Nego, e saímos.
- A gente pode ir a Biblioteca del Congreso e usar a internet de lá – fala o Nego.
- Então vamos...
A chuva está tão gelada que sinto que vai congelar meus ossos. A gente vai andando de toldo em toldo, tentando não se molhar muito, até que a chuva aperta de tal maneira que somos obrigados a ficar numa banca de jornal, parados.
- Meu, a gente é foda! Tava tudo tão bom aqui, por que a gente foi inventar esse lance de ir pro Uruguai? – pergunto, mesmo sabendo da importância do que vivemos lá.
- Pois é... – fala o Nego.
Passa um tempo e fica claro que a chuva não vai passar tão cedo. A gente resolve vencer as duas quadras que nos separam da biblioteca correndo sob a chuva gelada.
- Não acredito – fala o Nego.
- Que foi? – pergunto.
- A biblioteca tá fechada.
Algo me diz que vamos ter um dia daqueles. Como estou cansado – afinal não dormimos a noite toda – me sento num pequeno degrau à frente de um comércio que ainda está fechado.
- Eu vou dar uma volta por aqui pra olhar alguns hosteis (albergues) e perguntar quanto eles cobram por mês, você pode ficar aqui – fala o Nego.
Eu encosto meus braços em meus joelhos, minha cabeça em meus braços, e durmo.
***
Acordo e não vejo o Nego. Não sei quanto tempo passou, mas não devo ter cochilado mais que vinte ou trinta minutos. Ainda chove. Levanto-me para esticar o corpo e espero um pouco. Como o Nego não aparece, resolvo dar uma volta pelos arredores da Plaza del Congreso, onde está a Biblioteca del Congreso e o próprio congresso argentino, que dá nome aos dois anteriores.
Entro num sebo e dou uma longa olhada nos livros. Ainda que esteja morrendo de vontade, não compro nada e saio. Vou a uma Lan House e começo a buscar, pela internet, algum lugar para morar.
- Como você sabia que eu tava aqui? – pergunto ao Nego, que chega e senta ao meu lado.
- Quando eu cheguei e não vi você, tinha certeza que tinha se enfiado
- Eu tô pegando alguns telefones de alguns lugares pra gente ficar...
- Legal!
Alguns minutos depois saímos com os telefones e vamos a um Locutório (local onde se pode fazer ligações telefônicas, parecido com uma Lan House) para ligar nos lugares que selecionei e tentar marcar uma visita.
Algumas chamadas depois, conseguimos apenas dois lugares onde provavelmente podemos pagar. Pegamos um Ônibus e vamos conhecer o primeiro, que fica longe do centro, uns trinta minutos de viagem. E a chuva não dá trégua.
Chegamos na pensão, e o lugar parece muito bom. É uma pensão para estudantes, montada recentemente, extremamente limpa e organizada. Conversamos com o dono que parece boa pessoa. Depois de muita negociação não fechamos negócio porque não sabemos se o dinheiro que pedi a minha mãe já está disponível na conta. Combinamos, então, que vamos ao banco e voltaremos à pensão com o dinheiro para pagá-lo e pegar as chaves.
- Eu gostei muito dessa! – falo.
- Eu também! Você viu a janela? E a gente vai ter TV e geladeira só pra gente! – disse o Nego, tão empolgado quanto eu.
- Tomara que dê tudo certo...
- Tomara!
Pegamos um ônibus e vamos para o banco. No banco, ficamos radiantes ao notar que o dinheiro está na conta. Nesta agência do Banco do Brasil, porém, não podemos sacar o dinheiro. Voltamos para a rua e entramos em um banco qualquer onde podemos sacar via rede “Link” (semelhante à rede 24 horas, do Brasil).
Com dinheiro em mãos, vamos à pensão onde vive o Leo e pegamos as duas mochilas e o violão. Deixamos algumas coisas lá para pegar no dia seguinte, mas assim mesmo, nossas coisas estão bem pesadas – talvez por estarmos muito cansados, depois de uma noite sem dormir.
“Esse está sendo um dia bem longo” – penso.
Nós vamos a um Locutório, eu ligo para a pensão onde deixamos acertado que voltaríamos com o dinheiro e aviso que estamos indo para fechar negócio. Pegamos um ônibus. Chegamos. Tocamos a campainha e nada. Outra vez. Outra mais. Nada.
- Ai meu Deus, eu não acredito! Isso é muita sacanagem! O cara sabia que a gente tava vindo pra cá... – falo.
- Será que ele demora? – me pergunta o Nego.
- Por que você me pergunta essas coisas? Como eu vou saber? – respondo, mal criado. Já estou estressado e quase perdendo o controle.
- Tá, não começa! – diz o Nego.
- Vou procurar um Locutório pra ligar de novo!
Levanto e vou andando pelo bairro à procura de um lugar para telefonar. Encontro. Entro. Ligo. Nada. Outra vez. Nada. Outra mais. Nada. Tento no celular. Nada.
- Sem chance, não consegui ligar pra ele – falo, ao chegar na porta da pensão.
- Nem no celular? – pergunta o Nego.
- Não...
Esperamos um tempo, sentados, até que minha paciência acaba. Levanto-me e falo que não vou mais ficar naquela pensão, que vou procurar outra. De acordo, o Nego levanta e vem comigo. Pelo menos a chuva deu uma trégua.
Voltamos para a região central de Buenos Aires e ligamos para outra pensão. Falo com a encarregada e nos dirigimos ao local para conhecê-lo. Triste. Mesmo que não tenhamos onde ficar, nem precisamos conversar para saber o que o outro está pensando. O lugar é péssimo, muito sujo e mal cuidado. Uma rápida troca de olhares com o Nego basta para eu dizer pra senhora que não vamos ficar, que vamos ver outro local e decidir depois.
- Eu não vou me enfiar num lugar assim de novo! Não depois do que a gente passou em Montevidéu! – falo pro Nego.
- Lógico que não! Nunca mais! – ele concorda.
Seguimos andando sem rumo, sem saber qual o próximo passo. “Esse dia tá sendo mesmo muito longo!” penso.
- Vamos ligar pr’aquele cara de novo? – pergunta o Nego.
- Nem a pau! Eu não vou mais ficar naquele lugar – falo, estressado.
- Não custa ligar outra vez....
- Eu tenho certeza que esse cara não quer a gente lá, senão ele nos teria atendido...
- Mas a gente pode ligar assim mesmo, pra saber...
- Se você quiser, você liga. Eu não vou ligar.
Entramos num Locutório e o Nego liga. Nada.
- Não falei?! – digo, de forma bem mal criada.
Seguimos andando pela Avenida Rivadavia, quando passamos em frente à um hostel, na Praça do Congresso.
- Pra mim já chega! Eu vou passar a noite aqui nesse hostel, e amanhã a gente continua procurando algum lugar. Já tá quase de noite, e eu tô muito cansado. Se você quiser, pode vir comigo...
O Nego já sabe que, quando eu estou nesse nível de estresse, não adianta falar comigo. Ele me acompanha. No hostel, pra minha surpresa, uma moça pula no pescoço do Nego e lhe dá um enorme abraço, muito carinhoso.
- Quem era essa? – pergunto.
- A Marli, uma moça que eu conheci em Montevidéu.
- Qual?
- Aquela carioca que tá viajando de mochileira...
- Não acredito! Que coincidência! Então cê vai pegar mulé aqui?! Viu como foi bom entrar nesse hostel? Você ainda tem alguma dúvida de que tudo vai dar certo?