quinta-feira, 31 de março de 2011

057

Buenos Aires, Argentina, 19 de janeiro de 2011.

O sol vai revelando, por detrás das nuvens, um dia cinza e chuvoso. Estamos sentados perto de uma guarita, à margem do Río de La Plata, em Puerto Madero. As pessoas começam a fazer cooper, passear com seus cachorros e ir ao trabalho. Nós, o Nego e eu, passamos a noite acordados.

- ... e daí chegou um guarda e me disse que eu não poderia ficar ali, que eles estavam fechando o terminal da Buquebus. – fala o Nego.

- Nossa! E aí, o que você fez? – pergunto.

- Eu peguei todas as malas me sentei ali do outro lado do rio.

Nossas malas estão realmente pesadas. Não consigo imaginar como o Nego pôde carregá-las sozinho, junto com o violão e com o cajón (instrumento de percussão de origem peruana).

- E porque você veio pra esse lado?

- Eu tava sentado naquele banco, vê? – me pergunta o Nego apontando um lugar na outra margem.

- Sim...

- Então, eu tava sentado lá quando chegou um cara mal encarado me pedindo alguma coisa. Eu disse que não tinha, então ele resolveu me assaltar! Apareceram mais uns caras e juntou um monte ao meu redor...

- Caramba! E o que eles levaram? – pergunto olhando ao redor procurando a Guria (como se chama meu violão).

- Eles não levaram nada! Eu comecei a gritar e pedir ajuda pra uns guardinhas que, depois de afugentar os bandidos, me falaram pra ficar sentado aqui perto dessa guarita...

- A tá, entendo... E você carregou tudo sozinho de novo?!

- Pois é... E como foi lá, com a Flori?

- Foi legal...

Falo com detalhes sobre a noite que passei com Flori, também à margem do rio, até que nos levantamos e vamos para a pensão onde vive Leo. O plano é ficar na casa dele por um ou dois dias, até encontrar um lugar decente pra ficar. A gente não pode voltar para o mesmo apartamento de onde estávamos antes, pois o quarto onde vivíamos já está alugado.

Chegamos ao prédio onde o Leo vive e resolvemos esperar um pouco para chamá-lo, pois ainda é cedo, sete e meia da manhã. Sentados na escada do prédio, acariciando um gato que sabe Deus de onde veio, a gente conversa:

- ...então, assim que a gente conseguir um lugar pra ficar, eu vou naquele bar que a Regina nos indicou pra pedir emprego – fala o Nego.

- É uma boa. Tem um site de empregos que a Guria me indicou, a gente pode procurar alguma coisa nele também.

Passa algum tempo e o zelador do prédio pede pra gente sair, pois ele vai lavar a escada. A gente pega as coisas e se acomoda na frente do edifício.

Começa a chover.

- Eu vou lá acordar o Leo, a gente não pode ficar aqui tomando chuva – fala o Nego.

- Tá, eu fico aqui com as coisas – falo.

O Nego sobe e, alguns minutos depois, volta pra me ajudar a levar as coisas pro quarto de pensão onde vive o Leo.

- O teu irmão peruano tá com uma cara feia – ele fala.

- Também né? Ninguém merece ser acordado a essa hora da manhã...

Subimos com as coisas para o quarto do Leo que não nos recebe muito bem. Acho que, como eu, ele também não é muito sociável quando acaba de acordar. De cara nos fala que não podemos ficar com ele porque a dona da pensão não aceita visitas, e que teremos que pagar para ficar ali.

- Tudo bem, não tem problema. A gente pode deixar as coisas aqui até conseguir um lugar pra ficar? Acho que a gente acha algo hoje mesmo... – pergunto.

- Sim... – responde o Leo, com poucas palavras.

Pegamos uma mochila pequena com algumas coisas, como o computador do Nego, e saímos.

- A gente pode ir a Biblioteca del Congreso e usar a internet de lá – fala o Nego.

- Então vamos...

A chuva está tão gelada que sinto que vai congelar meus ossos. A gente vai andando de toldo em toldo, tentando não se molhar muito, até que a chuva aperta de tal maneira que somos obrigados a ficar numa banca de jornal, parados.

- Meu, a gente é foda! Tava tudo tão bom aqui, por que a gente foi inventar esse lance de ir pro Uruguai? – pergunto, mesmo sabendo da importância do que vivemos lá.

- Pois é... – fala o Nego.

Passa um tempo e fica claro que a chuva não vai passar tão cedo. A gente resolve vencer as duas quadras que nos separam da biblioteca correndo sob a chuva gelada.

- Não acredito – fala o Nego.

- Que foi? – pergunto.

- A biblioteca tá fechada.

Algo me diz que vamos ter um dia daqueles. Como estou cansado – afinal não dormimos a noite toda – me sento num pequeno degrau à frente de um comércio que ainda está fechado.

- Eu vou dar uma volta por aqui pra olhar alguns hosteis (albergues) e perguntar quanto eles cobram por mês, você pode ficar aqui – fala o Nego.

Eu encosto meus braços em meus joelhos, minha cabeça em meus braços, e durmo.

***

Acordo e não vejo o Nego. Não sei quanto tempo passou, mas não devo ter cochilado mais que vinte ou trinta minutos. Ainda chove. Levanto-me para esticar o corpo e espero um pouco. Como o Nego não aparece, resolvo dar uma volta pelos arredores da Plaza del Congreso, onde está a Biblioteca del Congreso e o próprio congresso argentino, que dá nome aos dois anteriores.

Entro num sebo e dou uma longa olhada nos livros. Ainda que esteja morrendo de vontade, não compro nada e saio. Vou a uma Lan House e começo a buscar, pela internet, algum lugar para morar.

- Como você sabia que eu tava aqui? – pergunto ao Nego, que chega e senta ao meu lado.

- Quando eu cheguei e não vi você, tinha certeza que tinha se enfiado em alguma Lan House, com esse vício por internet, e como essa é a única que tem por aqui... – ele responde.

- Eu tô pegando alguns telefones de alguns lugares pra gente ficar...

- Legal!

Alguns minutos depois saímos com os telefones e vamos a um Locutório (local onde se pode fazer ligações telefônicas, parecido com uma Lan House) para ligar nos lugares que selecionei e tentar marcar uma visita.

Algumas chamadas depois, conseguimos apenas dois lugares onde provavelmente podemos pagar. Pegamos um Ônibus e vamos conhecer o primeiro, que fica longe do centro, uns trinta minutos de viagem. E a chuva não dá trégua.

Chegamos na pensão, e o lugar parece muito bom. É uma pensão para estudantes, montada recentemente, extremamente limpa e organizada. Conversamos com o dono que parece boa pessoa. Depois de muita negociação não fechamos negócio porque não sabemos se o dinheiro que pedi a minha mãe já está disponível na conta. Combinamos, então, que vamos ao banco e voltaremos à pensão com o dinheiro para pagá-lo e pegar as chaves.

- Eu gostei muito dessa! – falo.

- Eu também! Você viu a janela? E a gente vai ter TV e geladeira só pra gente! – disse o Nego, tão empolgado quanto eu.

- Tomara que dê tudo certo...

- Tomara!

Pegamos um ônibus e vamos para o banco. No banco, ficamos radiantes ao notar que o dinheiro está na conta. Nesta agência do Banco do Brasil, porém, não podemos sacar o dinheiro. Voltamos para a rua e entramos em um banco qualquer onde podemos sacar via rede “Link” (semelhante à rede 24 horas, do Brasil).

Com dinheiro em mãos, vamos à pensão onde vive o Leo e pegamos as duas mochilas e o violão. Deixamos algumas coisas lá para pegar no dia seguinte, mas assim mesmo, nossas coisas estão bem pesadas – talvez por estarmos muito cansados, depois de uma noite sem dormir.

“Esse está sendo um dia bem longo” – penso.

Nós vamos a um Locutório, eu ligo para a pensão onde deixamos acertado que voltaríamos com o dinheiro e aviso que estamos indo para fechar negócio. Pegamos um ônibus. Chegamos. Tocamos a campainha e nada. Outra vez. Outra mais. Nada.

- Ai meu Deus, eu não acredito! Isso é muita sacanagem! O cara sabia que a gente tava vindo pra cá... – falo.

- Será que ele demora? – me pergunta o Nego.

- Por que você me pergunta essas coisas? Como eu vou saber? – respondo, mal criado. Já estou estressado e quase perdendo o controle.

- Tá, não começa! – diz o Nego.

- Vou procurar um Locutório pra ligar de novo!

Levanto e vou andando pelo bairro à procura de um lugar para telefonar. Encontro. Entro. Ligo. Nada. Outra vez. Nada. Outra mais. Nada. Tento no celular. Nada.

- Sem chance, não consegui ligar pra ele – falo, ao chegar na porta da pensão.

- Nem no celular? – pergunta o Nego.

- Não...

Esperamos um tempo, sentados, até que minha paciência acaba. Levanto-me e falo que não vou mais ficar naquela pensão, que vou procurar outra. De acordo, o Nego levanta e vem comigo. Pelo menos a chuva deu uma trégua.

Voltamos para a região central de Buenos Aires e ligamos para outra pensão. Falo com a encarregada e nos dirigimos ao local para conhecê-lo. Triste. Mesmo que não tenhamos onde ficar, nem precisamos conversar para saber o que o outro está pensando. O lugar é péssimo, muito sujo e mal cuidado. Uma rápida troca de olhares com o Nego basta para eu dizer pra senhora que não vamos ficar, que vamos ver outro local e decidir depois.

- Eu não vou me enfiar num lugar assim de novo! Não depois do que a gente passou em Montevidéu! – falo pro Nego.

- Lógico que não! Nunca mais! – ele concorda.

Seguimos andando sem rumo, sem saber qual o próximo passo. “Esse dia tá sendo mesmo muito longo!” penso.

- Vamos ligar pr’aquele cara de novo? – pergunta o Nego.

- Nem a pau! Eu não vou mais ficar naquele lugar – falo, estressado.

- Não custa ligar outra vez....

- Eu tenho certeza que esse cara não quer a gente lá, senão ele nos teria atendido...

- Mas a gente pode ligar assim mesmo, pra saber...

- Se você quiser, você liga. Eu não vou ligar.

Entramos num Locutório e o Nego liga. Nada.

- Não falei?! – digo, de forma bem mal criada.

Seguimos andando pela Avenida Rivadavia, quando passamos em frente à um hostel, na Praça do Congresso.

- Pra mim já chega! Eu vou passar a noite aqui nesse hostel, e amanhã a gente continua procurando algum lugar. Já tá quase de noite, e eu tô muito cansado. Se você quiser, pode vir comigo...

O Nego já sabe que, quando eu estou nesse nível de estresse, não adianta falar comigo. Ele me acompanha. No hostel, pra minha surpresa, uma moça pula no pescoço do Nego e lhe dá um enorme abraço, muito carinhoso.

- Quem era essa? – pergunto.

- A Marli, uma moça que eu conheci em Montevidéu.

- Qual?

- Aquela carioca que tá viajando de mochileira...

- Não acredito! Que coincidência! Então cê vai pegar mulé aqui?! Viu como foi bom entrar nesse hostel? Você ainda tem alguma dúvida de que tudo vai dar certo?

segunda-feira, 28 de março de 2011

056

Algum ponto entre Montevidéu e Colonia del Sacramento, Uruguai, 18 de janeiro de 2011

Sentado no assento da janela, observando toda aquela paisagem pela primeira vez (por estar acordado neste trajeto também pela primeira vez), eu vou pensando nos acontecimentos dos últimos dias. Um ciclo está encerrando – um ciclo que, apesar de bastante longo, chega ao fim.

“Não é preciso viver mal porque muitas pessoas vivem mal. Não é preciso viver triste porque muitas pessoas vivem triste. A Ná me disse isso uma vez, repetindo as palavras do Masaharu Taniguchi (fundador da Seicho-No-Ie). Eu mesmo li palavras semelhantes nos “Segredos da Mente Milionária” de T.Harv Eker. Mas, como tudo em minha vida, eu tive que viver na própria pele uma situação de extrema pobreza (e que não foi, nem de longe, a mais extrema possível) para entender o significado dessas palavras. Não é enfiado num buraco em Montevidéu que eu vou poder fazer algo decente da minha vida...” – penso.

Do lado de fora da janela, os campos verdinhos vão passando sem passar – nada muda, e parece não ter fim. No meu fone de ouvido, a canção “Al otro lado del Río” de Jorge Drexler vai repetindo pela enésima vez – uma trilha sonora perfeita para o momento, sem dúvida.

“Interessante como as pessoas nunca aparecem por acaso. Mesmo numa simples viagem como essa primeira que fizemos ao Uruguai. Nela conheci a Anni e, com certeza, fomos muito importantes na vida um do outro, apesar do pouco tempo que tivemos. Espero que a tenha ajudado, de alguma forma, a encontrar ao menos um pouco do amor incondicional que ela busca nessa vida. De minha parte, sou muito grato à ela por me ensinar com sua experiência de vida – mesmo os pequenos detalhes são importantíssimos! Nunca tinha pensado em trabalhar num Hostel, e isso parece perfeito nesse momento. Vou procurar emprego num Hostel quando chegar.

A Flori também, com algumas conversas por MSN, me ajudou bastante nessas duas semanas (tristes) de Uruguai, nesta segunda viagem. Sobretudo pelo apoio e pelas opiniões precisas. Ela acha que, se eu sinto que devo estudar, que o faça assim que voltar; que eu devo escolher uma carreira que me deixe feliz, e não uma que me dê dinheiro, uma vez que não é o acúmulo de dinheiro que vai me fazer feliz. E o mais importante: quando lhe perguntei se ela estava ciente que eu vou recomeçar minha vida do zero em Buenos Aires, sem emprego, sem estudo e sem dinheiro, ela disse que sim, e que assim mesmo queria estar comigo nesse processo. Ela é uma moça encantadora.”

Do meu lado, pra minha surpresa, o Nego não está dormindo. Talvez ele também tenha muitas coisas na cabeça, depois dessa curta temporada de pobreza, tristeza e incerteza – palavras que rimam mas que não montam uma boa poesia...

“Difícil vai ser quando a Táta voltar a Buenos Aires também. Isso é meio confuso. Anni, Flori. Táta. Ela não sai da minha cabeça mesmo com todos esses acontecimentos. Talvez eu não seja assim tão capaz de controlar meus sentimentos, mesmo buscando outros estímulos. Essa é uma busca interessante – domar-se. Eu acho que esse é um passo importante para o ser humano e, a julgar pela dificuldade, o prêmio por essa conquista deve ser incrível.”

Nosso ônibus finalmente chega ao terminal. Pegamos nossas coisas e vamos para a área de compra de passagens e embarque da Buquebus – empresa que faz a travessia de barco entre Colonia del Sacramento e Buenos Aires. Por sorte, conseguimos a passagem para duas horas.

Fazemos o check-in, passamos pela imigração e sentamos na sala de espera. A vista do sol se pondo num rio alaranjado como o céu é perfeita para o momento. Acima de tudo, Deus é um artista.

quarta-feira, 23 de março de 2011

055

São Paulo, Brasil, 27 de março de 2000.

Saímos da sala de aula em fila indiana – isso era meio esquisito, afinal já estávamos na oitava série, mas essa era a única maneira de manter nossa turma sob controle.

Atravessamos o corredor do prédio principal da Escola Professor Almeida Júnior, passamos pelo pátio externo e chegamos na Sala de Leitura, onde a professora Noemi ( de português) nos entregou a também professora Irene (responsável pela Sala de Leitura).

Era parte do nosso programa de português ir à Sala de Leitura regularmente, onde escolhíamos qualquer coisa de nosso interesse para ler. Eu sempre pegava algo da seção de romances aventurosos infanto-juvenis. Naquele dia, porém, a atividade era outra:

- Pessoal, presta atenção aqui! – falou a professora Irene.

Rapidamente o fuzuê que o pessoal fazia, falando alto e pentelhando uns aos outros se extinguiu como a chama de uma vela que recebe uma lufada de ar. Essa era a única professora que tinha esse efeito na turma – e não era pela simpatia; na verdade, eu acho que ela deixava a simpatia em casa.

- Hoje vocês vão fazer uma redação. O tema é “o furo da minha mão”. Vocês têm que escrever uma história com esse assunto, e o título tem que ser igual ao que eu falei. Alguma dúvida?

Todos nós tínhamos muitas dúvidas, mas é óbvio que a professora nunca soube delas – quem se atreveria a perguntar alguma coisa?

- Essa atividade é para entregar, então vocês devem tirar uma folha do caderno e, por favor, não me entreguem nada com aqueles cabelinhos de papel pendurados na lateral da folha – vou tirar nota por isso! – finalizou a professora.

Como ordenado, tirei uma folha do meu caderno e escrevi o seguinte texto:

O furo da minha mão

O furo da minha mão é algo bem estranho, mas eu já me acostumei com ele. Ele, o furo, já está aí a bastante tempo, eu nem me lembro direito como ele surgiu. Foi um dia que eu acordei e fui lavar o rosto, como qualquer pessoa faz. O problema é que eu pegava a água com a mão e ela não chegava até o rosto. Aí eu fiquei “zoiando” e percebi ele lá, do tamanho de uma moeda. Fui correndo até minha mãe. A “véia” tomou um susto coitada, e eu achando graça em tudo, nos meus cinco anos de idade.

Mamãe e eu fomos ao médico, que não soube explicar o ocorrido.

O furo da minha mão tem vantagens e desvantagens. Com ele eu posso “bizoiá” onde o povo se esconde, quando estamos brincando. Mas não posso segurar moedas, porque cai tudo.

Mas o problema maior foi a escola. Sempre fui alvo de brincadeiras de mau gosto, mas, Aline, minha melhor amiga sempre me defendia. Aliás, já que tocamos no assunto, Aline sempre foi uma magricela chatinha, com os cabelos longos e os olhos de jabuticaba. Sempre eu acho que não é a palavra certa, quase sempre sim. Quase sempre porque hoje, não sei como aconteceu, mas ela ficou bonita. Acho que estou apaixonado. Aí você me pergunta: o que ela tem a ver com o furo da minha mão? Simples! Graças a ele conheci Aline.

Por isso, sou o “furado” mais feliz do mundo. Qualquer dia, se o furo ajudar, me declaro a ela, mas tem tempo, muito tempo.

Você pode não ter furo, mas com certeza tem o pé grande, a cabeça enorme, um narigão, etc. Mas se souber usá-lo, poderá ganhar muito, pois são esses “defeitos” que o tornam especial.

Bom, agora deixa eu ir porque o furo tá aqui me dizendo que a Aline vem aí. Fui!

Tirei os cabelinhos de papel da lateral da folha e entreguei o texto pra professora.

***

São Paulo, Brasil, abril de 2000.

- Robson, aqui está a tua redação – falou a professora Irene – meus parabéns! Seu texto está muito bom!

Meio sem jeito, tímido, peguei a redação e guardei na mochila.

***

- Filho, você tirou 10 na redação e não me falou nada? – disse minha mãe, que andara fuçando na minha vida escolar novamente, como sempre.

- Ah, mãe... – eu não via muitos motivos para alardear esse tipo de coisa.

- Parabéns, você escreve bem! Mas tem algumas coisas que pode melhorar, senta aqui pra eu te ensinar algumas coisas...

sexta-feira, 18 de março de 2011

054

Montevidéu, Uruguai, 18 de janeiro de 2011

- Nego, posso te pedir uma coisa? – puxa assunto o Nego.

- Fala...

Eu estou deitado na cama – isso é tudo o que eu tenho feito nos últimos dias. Não tenho vontade de fazer nada. Sequer tenho observado a vida passando ante meus olhos. Não fosse o fraco sinal de internet sem fio que a gente pega de algum lugar na vizinhança, e que me permite algum contato com o mundo, minha atividade se reduziria a dormir. Com o Nego não é diferente

- Faz tanto tempo que a gente só tá comendo pão... Será que você podia fazer um macarrão hoje?

No dia em que a gente chegou nesse quarto, ficamos agradecidos por ter um teto. O lugar estava uma imundície: cheio de pó, de lixo, de insetos. Até preservativo usado a gente encontrou. As paredes “pintadas” com cal já tinham perdido há muito qualquer coloração que não o cinza da sujeira. Uma foto do Gandhi encontrada no armário capenga, porém, me deu a força necessária pra aceitar esse “estado transitório”. Mas agora, nesse momento, minha energia inexiste – foi totalmente sugada pela pobreza do lugar. Com o Nego não é diferente.

- Tem certeza que você quer encarar aquela cozinha? – pergunto.

- Sim... Eu não agüento mais comer pão...

- Ta bom, eu vou tomar banho e depois vou ao mercado comprar molho e tempero...

Eu levanto, pego minhas coisas e vou para o banheiro. A fraca iluminação do cômodo, somada aos azulejos e pisos velhos, gastos e quebrados do lugar, me transporta àquele banheiro do filme “Jogos Mortais” – tenso.

Com muito cuidado para não encostar em nenhum lugar desnecessário, eu tiro minha roupa e a penduro na maçaneta da porta. Dou uma olhada no espelho, e não sei o que é pior: as manchas e rachaduras do objeto, ou minha cara de completo desânimo. A área do chuveiro está completamente alagada, o que demonstra que alguém tomou banho e o ralo entupido não deu vazão à água suja. Ligo o chuveiro e entro debaixo d’água tentando não pisar naquela meleca feita de cabelo e micose.

“Que saudade do apartamento onde morava em Buenos Aires” – penso.

Termino o banho o mais rápido possível, me seco, me visto e vou pro quarto guardar as coisas. Pego o dinheiro, as chaves e vou pro mercadinho.

O dia está ensolarado, e a rua quase sem movimento. Parece que meu desânimo tomou conta da cidade. Caminho umas três quadras e entro no primeiro lugar que encontro.

Talvez sejam meus olhos, mas eu duvido. O mercado também tem um ambiente triste. As prateleiras se amontoam umas sobre as outras, dividindo um espaço muito reduzido. A iluminação quase inexistente não consegue esconder a sujeira do lugar, e os produtos... Bem... Está difícil escolher uma cebola que seja, no mínimo, comestível.

Depois de muito tempo selecionando, compro uma cebola, uma cabeça de alho, um suco em pó, um óleo, um sal e um molho de tomate – tudo do mais barato, pois é o que o dinheiro permite.

“Essa Montevidéu ta bem diferente daquela que conhecemos com o Leo, alguns dias atrás...” – penso, enquanto caminho de volta pra pensão.

- Você me ajuda lá na cozinha, pra ir mais rápido? – pergunto pro Nego, ao chegar no quarto.

- Sim! Você vai cozinhar agora?

- Vou...

Pegamos as compras, o macarrão que trouxemos de Buenos Aires (presente do Leo) e descemos até a cozinha. Quando chegamos no cômodo, eu preciso fazer muito esforço pra seguir com o propósito de cozinhar.

A cozinha é pequena. Os azulejos gastos e rachados - como de todos os outros cômodos – estão completamente engordurados. Pego uma panela igualmente engordurada e muito nojenta e passo para o Nego dar uma lavada. Coloco água na panela virtualmente limpa, óleo e sal, e deixo ferver – num fogão também muito sujo e engordurado, além de bambo.

Enquanto isso, com uma faca cega e sem dentes eu corto (ou tento) a cebola e o alho.

- Me dá outra panela aí – falo pro Nego.

Ele, ao mexer no escorredor de louças para pegar o objeto, descobre que o lugar também serve de moradia para baratas. Nojento.

- Mano, puta merda! Isso é muito tosco! Tipo, a gente chegou agora e vai sair daqui a pouco, mas imagina esse povo que passa uma vida num lugar desses...

Triste.

Refogo o molho, boto o macarrão – já cozido à essa altura – e espero mais um pouco, com o fogo baixo, para que o molho fique um pouco mais consistente.

Terminamos e subimos pro quarto.

Comemos.

Depois da refeição, desabafo:

- Meu...não dá mais pra ficar aqui...

quarta-feira, 16 de março de 2011

053

Montevidéu, Uruguai, 16 de janeiro de 2011

Eu saio da pensão e fico esperando a Anni sentado no degrau da porta. Nós combinamos passear pela orla da praia e, depois, procurar um lugar onde possamos sentar e tomar mate juntos. O dia, porém, não parece muito propício a isso: está nublado. Ao meu lado, o encarregado e o porteiro do turno da noite conversam qualquer coisa enquanto fumam.

Avisto a Anni no horizonte e, mesmo sem a certeza de ser ela mesma que se aproxima, me levanto e vou em sua direção.

- Oi! Como você está? Eu estava com saudades... – falo.

- Eu também! Estou bem, e você?

- Bem... Deixa eu levar essa bolsa pra você!

- A, não precisa! Está pesada...

- Sim, é o que parece, e por isso mesmo eu devo levá-la!

Com alguma relutância, a Anni me entrega a bolsa onde estão os aparatos para tomar mate: a garrafa térmica, a “bombilla” (o canudo) e a cumbucazinha – além da erva, é claro.

De mãos dadas caminhamos até a orla da praia, onde rapidamente nos sentamos de frente para o rio (ou mar, ainda não posso definir o que é o que, nesse ponto onde água doce e salgada se fundem imaginando ser o amor entre opostos algo possível – ou talvez sem pensar nessas besteiras, querendo apenas estar uma com a outra).

- Nossa, eu adoro essa vista, sabe? Essa vastidão de água que preenche todo o horizonte me dá uma calma, mas ao mesmo tempo uma ansiedade de lançar-me por aí...

- Eu também! É por isso que eu sou feliz aqui em Montevidéu. Eu sempre olhava pro mar, em Husum (cidadezinha ao norte da Alemanha), e sentia muita falta disso em Mendoza (cidade argentina que fica próxima aos Andes). É como se as montanhas me prendessem, sei lá...

Ouvindo a Anni, tenho a impressão que ela é uma alma errante, que anseia pela liberdade acima de tudo. Nunca a prisão da carne me pareceu tão difícil para uma pessoa como me parece pra ela. Por isso mesmo, não descarto a possibilidade de inventar nela a pessoa que sou – dificilmente a gente não age assim, estamos sempre moldando no outro o que somos.

- Me fala, como é Valizas?

- É uma cidade muito pequena, quase um povoado...

- Sério? O camping onde você ficou era muito longe da praia?

- Não, umas quatro quadras! Lá é muito pequeno, nada fica longe da praia...

- Entendo... E como é? Tem montanhas ao redor? Tem que descer uma serra para chegar no litoral?

- Não... É tudo muito plano. Sabe como é o caminho de Colonia del Sacramento até aqui? É igual...

- Hum...

Apesar de ter feito esse caminho umas três vezes, eu não sei dizer como ele é, exatamente, pois dormi na maior parte do tempo. Da parte que me lembro – aquele na qual andei um pouco de carona e caminhei uma eternidade na beira da estrada, dias antes, com o Nego e o Leo – eu posso dizer que, de fato, o caminho é plano.

- E como foi lá? O que você fez?

- Nada demais... Não há muito o que fazer da vida lá, além de entrar no mar e pensar na vida...

Silêncio.

Venta muito. Tanto que meus cabelos parecem querer me abandonar e seguir seu próprio rumo – e os da Anni também, ainda que de uma forma mais comportada. Seus olhos me parecem menos brilhantes hoje, talvez por estar o dia nublado, ou talvez o dia esteja nublado pela falta de brilho nos olhos dela.

Ela puxa o ar, como que tenta dizer alguma coisa, e desiste de falar – não pela primeira vez. Eu já sei o que está por vir, então decido ajuda-la a entrar no assunto, algo que lhe parece quase impossível:

- Você conseguiu pensar sobre aquilo?

- Sim. Eu me sentei numa pedra bem alta e fiquei ali, o dia todo, olhando para o mar e pensando...

- E conseguiu tomar alguma decisão?

- Sim....

- E? Qual foi?

Diferente do que eu poderia imaginar, não estou ansioso. Eu gosto da Anni, e não seria exagero dizer que, em outra época – tanto pra mim, como pra ela – isso poderia se tornar uma paixão, daquelas avassaladoras que a gente sempre espera viver, ainda que negue isso na maior parte do tempo.

Não estou ansioso, porque isso não é meu. Esse momento não é meu. É dela. Sei disso, e por isso me dôo, me ponho como não mais que uma mão a ajuda-la a seguir seu caminho, como quem ajuda alguém a atravessar a rua.

- Eu quero tentar de novo com ele. Quero reatar com meu ex-namorado.

A tristeza me visita nesse instante. Mesmo sabendo que tudo tem seu tempo, que tudo tem uma razão, eu me sinto triste. Rejeitado. Meu coração bate mais acelerado, o peito dói, a boca seca. Meu olhar não encontra o dela, foge – não o da carne, que segue estático olhando aqueles olhos azuis sem brilho, mas o da alma, que procura abrigo. Me pergunto se ela pode notar isso.

Esse instante, porém, é muito mais breve que um piscar de olhos. Eu mudo rapidamente o foco do meu sentimento (e aqui fico feliz de notar o resultado de tanto treinamento), afinal, não é meu momento, é o dela.

- Fico feliz por você, Anni. Não nego que fico triste por mim, mas fico muito mais feliz por você! Essa é uma decisão difícil, e você conseguiu toma-la...

- Desculpa...

- Você não deve me pedir desculpas! De verdade, fico contente que você ainda acredite no amor que sente por ele, e esteja disposta a tentar novamente!

Talvez seja impressão minha, mas eu quero acreditar que o brilho está voltando pr’aqueles olhos azuis novamente.

- Sabe, eu gostaria que ele pudesse ser um pouco como você...

- E certamente gostaria que eu pudesse ser um pouco como ele!

- Hum... Não sei em quê você poderia ser como ele...

- Mas certamente há muitas coisas – coisas essas que te fazem amá-lo!

A chuva que se anunciava começa a cair, tão forte e intensa como a importância daquele momento em nossas vidas.

- Nossa, essa chuva é igualzinha à chuva que cai no verão, em minha cidade natal! – digo. Faz muito tempo que eu não tomo um banho de chuva assim!

Nos levantamos e voltamos pra casa caminhando – não adiantaria correr, já estamos ensopados. Seguimos conversando sobre qualquer trivialidade a respeito de chuva e infância, até que chega o momento da despedida.

Eu tomo seu rosto molhado em minhas mãos. Olho dentro de seus olhos e digo, calado, tudo aquilo que as palavras não conseguem. Puxo seu corpo para junto do meu, e lhe dou o último beijo. Assim, sem adeus, vou embora sem olhar pra trás.

terça-feira, 15 de março de 2011

052

São Paulo, Brasil, 30 de abril de 2010

Sem conseguir dormir, depois de uma noite de emoções intensas, eu observava o Nego dormindo no sofá, enquanto ouvia John Mayer no fone de ouvido e escrevia sobre o que havia vivido horas antes, no Shopping Bourbon (São Paulo capital, Brasil):

Surpresas

Ontem me surpreendi. Surpreendeu-me notar o quanto a vida pode ser complicada. Surpreendeu-me notar o quanto podemos complicar a vida. Acima de tudo, me surpreende o quanto é bom levar uma vida complexa. Dói, mas faz crescer. Não é surpresa pra mim o fato do crescimento vir acompanhado da dor, ou vice-versa (não importa), tampouco o fato d'eu estar acostumado com tudo isso. Não é mais surpresa o fato d'eu saber lidar com tudo isso – eu cresci.

Não fiquei surpreso porque existem pessoas como eu. Fiquei surpreso por me conhecer à ponto de ver-me nestas pessoas e, por isso mesmo, saber exatamente o que fazer. Fiquei surpreso por ter feito o que tinha de fazer. Fiquei surpreso por ter feito direito. Fiquei mesmo muito surpreso ontem.

Ontem me surpreendeu o amor. Ele esteve ali conosco, suspenso no ar. Na verdade parecia uma outra pessoa ali com a gente, o amor. Surpreendeu-me o fato de nunca tê-lo notado, pois eu sei que ele sempre esteve ali. Eu sou o amor. “Alguém” precisou me dizer isso pra que eu entendesse o que acontece aqui dentro. Isso não me surpreendeu: é muito mais fácil a gente se conhecer quando ouvimos – de verdade – o que os outros têm a dizer.

Aquele momento me surpreendeu. Na verdade, estou surpreso até agora. Me surpreende – e muito – o fato d'eu não encontrar palavras pra descrever tudo aquilo. Como eu poderia? O adjetivo mais próximo que posso encontrar agora é *mágico*. Aquele momento, ontem, foi mágico. Nós três ali, eu, ela e o amor – uma trindade perfeita. Um uníssono perfeito.

Há pouco tempo, surpreendeu me notar o quanto os caminhos tortuosos da vida parecem meticulosamente planejados por uma inteligência superior. Chega uma hora em que todas as voltas começam a fazer sentido, pois o fato de um caminho ser o mais curto não quer dizer que seja o melhor.

Surpreendeu-me notar como certas coisas – aquelas verdadeiras – sempre farão parte de nossa vida. Estas coisas são como a velocidade da luz, mais fortes que o tempo e o espaço. O amor é uma coisa destas, com certeza!

Nossa cumplicidade não me surpreendeu. Não ontem. Há 10 anos foi uma surpresa – não mais. Nossa sinceridade também não me surpreendeu – isso nem há 10 anos. O que me surpreendeu ontem foi a conexão. Não por ela existir entre a gente, mas por existir algo assim. A gente sempre imagina que duas pessoas possam conectar-se desta forma, assim como sempre imagina que Deus existe. Experimentar isso é que surpreende.

Meu ritmo é descompassado e o dela também – isto não é surpresa. Mas os dois formam uma polirritimia perfeita – isto também não é surpresa. Ontem fiquei triste com ela, fiquei feliz com ela, fiquei triste por ela, fiquei feliz por ela. Pude – e posso – sentir sua dor, a ponto de pedir pelo amor de Deus: pare de fazer-nos sofrer. Pude – e posso – sentir sua paixão, a ponto de pedir pelo amor de Deus: viva esta paixão! Nossa! Isso me surpreendeu.

Então assim é amar alguém de verdade – quando nada é tão importante quanto a felicidade da pessoa amada, mesmo que não seja você a trazer esta felicidade. Esta felicidade que só a paixão traz. Que se dani quem traz a paixão, o importante é que ela está apaixonada – está viva! Isto pode ser surpreendente pra quem lê este texto, mas pra mim não é. O amor é mais forte que o tempo e o espaço. Viva o que tiver de viver, e volte pra mim quando estivermos prontos para jamais nos separarmos. Uma união perfeita é o que eu espero, e por isso posso esperar a vida toda!

Ontem surpreendeu-me notar o quanto eu cresci, o quanto me tornei forte, o quanto me tornei sábio. Mas não me surpreendeu notar o quanto tenho de crescer, o quanto tenho de ser forte, o quanto tenho de adquirir sabedoria.

Ontem me surpreendeu, acima de tudo, notar que o amor verdadeiro – verdadeiro de verdade! - existe mesmo, que é visível, palpável. O que não me surpreendeu nenhum pouco foi notar que este é o amor que sentimos um pelo outro.

Amo você.

segunda-feira, 14 de março de 2011

051

Montevidéu, Uruguai, 11 de janeiro de 2011

Perdido na imensidão daqueles olhos azuis, eu falo pra Anni:

- Eu pensava que você era uruguaia! Você fala o espanhol quase sem sotaque!

Esse é o tipo de coisa que me encanta: o espanhol não é minha língua materna, e nem a dela. Não fosse nosso conhecimento nessa língua, nossa comunicação seria quase nula, mas graças a esse idioma, podemos trocar experiências maravilhosas...

- Que nada, você que fala bem... Mas o povo daqui tem cara de europeu mesmo, dá pra confundir. Também, aquele fulano...o...eu não lembro o nome dele, mas ele aparece na nota de 100 pesos argentinos, Sarmiento, acho. Ele matou todo negro e índio que encontrou pela frente...

- Nossa! Eu não sabia disso! Vou pesquisar sobre depois... Mas isso é foda né? O Hitler matou gente pra caralho e hoje é quase uma heresia tocar no nome dele. Já esse outro que matou tanto quanto, ganhou status de herói...

Nós estamos sentados num banco na Plaza Independencia, uma das mais importantes de Montevidéu. Aqui estão os restos mortais do General José Artigas, guardados num mausoléu feito em sua homenagem, localizado no subsolo abaixo de uma estátua sua que mantém sua imagem visível a todos os governantes do país que adentram a Casa de Governo, esta localizada a poucos metros da praça. O General José Artigas é uma figura muito importante na história uruguaia.

Venta bastante, o que deixa a noite muito mais agradável. Esse, porém, é o único detalhe em que posso prestar atenção. Não sei se o céu está nublado ou estrelado, não sei em que fase está a lua, não sei se há algum movimento ao nosso redor. Só consigo prestar atenção no par de olhos azuis que tentam – e conseguem – hipnotizar-me.

- Qual é o maior sonho da tua vida? - pergunto.

- Meu maior sonho é aprender a amar as pessoas de maneira incondicional – ela responde sem precisar pensar muito.

A Anni é alemã. Ela vive no Uruguai há poucos meses, e já viveu na Argentina também. Quando lhe perguntei o que fazia aqui na América do Sul, quando podia viver na Europa, sua resposta me pegou de surpresa: “o povo na Europa vive meio alienado. Eles não sabem muito bem o que se passa no mundo. Eles não têm muita noção da pobreza em que o povo vive em alguns lugares. Quando eu me dei conta disso, simplesmente não podia seguir levando uma vida daquelas...”.

De fato, eu tive uma impressão muito parecida com essa, quando passei aquele tempo em Londres, no meio do ano passado. Na Europa, tudo é quase perfeito, parece um conto de fadas. Quase perfeito a ponto de entorpecer as pessoas que vivem essa realidade, tirando-lhes a capacidade de enxergar além do próprio umbigo e ver a necessidade de tentar dividir todo esse conforto entre o mundo todo.

- Poxa, mas isso é muito fácil Anni! Basta você entender que todos nós merecemos compreensão e perdão. Quando você perdoa de verdade, você ama incondicionalmente. Qualquer um.

- Eu não consigo perdoar, por exemplo, uma pessoa que tortura outra pessoa. Uma pessoa torturada nunca mais vai levar uma vida normal...

- E nem a pessoa que tortura, né?

- Hum...é...

- Eu acho que torturador e torturado são vítimas do mesmo modo. Não acho que uma pessoa normal escolheria viver torturando outras pessoas, se tivesse plena consciência das profundas conseqüências desse ato – excluindo aqui, claro, pessoas que têm algum tipo de doença psicológica. Leon Uris, por exemplo, descreve no seu “Grito de Guerra”, o processo pelo qual passa um conscrito para que este se torne um soldado – uma máquina de guerra. O sujeito tem sua personalidade completamente destruída – seus valores, suas crenças, suas paixões – através do “treinamento militar”, onde recebe em troca a impressão de que a guerra é algo normal, onde vale tudo...

- É...acho que entendo o seu ponto de vista...

Ao dizer essas palavras, a Anni se aninha em meu peito. Com ela assim, entre meus braços, a vontade de conversar vai embora. Longe de seus olhos azuis por um instante, eu posso ver a noite. Não há estrelas nem lua, apenas nuvens tapando até mesmo o negrume da noite, dando ao céu uma coloração meio cinza, meio púrpura.

- Preciso te falar uma coisa... – ela puxa assunto novamente.

- Fala!

- Meu ex-namorado, aquele com quem eu morava junto na Argentina, tá aqui. Ele veio pra cá porque quer tentar de novo, comigo...

- Entendo...e você, o que acha disso?

- Eu não sei...

- Olha Anni, se você acha que deve tentar novamente com ele, pra mim não tem problema. Não estou dizendo, com isso, que não gosto de você. Pelo contrário. Gosto de você ao ponto de entender que talvez você seja mais feliz ao lado dele...

- Não sei... nós, eu e ele, já passamos por tantas coisas juntos sabe? Tantas dificuldades, e sempre estivemos unidos... Por outro lado, eu sinto que não amo ele com a mesma intensidade de antes... Não estaria tão encantada com você, se o amasse do mesmo jeito...

- Eu sei o que você está dizendo... sabe, eu já fui casado, sei como é difícil aceitar que algo tão bonito possa perder o brilho, chegar ao fim...

- É mais ou menos isso...

- Acho que você deve pensar. Levar em consideração todos os aspectos positivos e negativos de tentar de novo com ele.

- Eu vou fazer isso. Vou viajar nesse final de semana, pra Valizas. Lá vou poder ficar um pouco sozinha e pensar na vida com mais calma...

- Isso vai ser muito bom! Acho que, antes de mais nada, você deve pensar na tua felicidade. Não pense em mim, ou nele. Pense em você. Pode parecer que você vai agir de maneira egoísta, mas a verdade é que, se você agir pensando na felicidade de outra pessoa acima da tua, você não vai conseguir fazer essa pessoa realmente feliz – e priva-la da felicidade sim, seria um ato egoísta...

Ao terminar a última frase, eu fico cego: o sorriso que ela abre é tão intenso e luminoso que parece o próprio sol.

sábado, 12 de março de 2011

050

Montevidéu, Uruguai, 10 de janeiro de 2011

Essa noite está quase tão longa quanto aquela que passamos numa casa abandonada, à beira da estrada que liga Colonia del Sacramento e Montevidéu. Nós tentamos sacar dinheiro outra vez, no fim da tarde, sem sucesso. Conseguimos, porém, entrar em contato com a mãe do Nego, que confirmou o depósito do dinheiro. Só nos resta esperar.

O Terminal Rodoviário Trés Cruces está relativamente vazio agora. Talvez algumas dessas pessoas estejam na mesma situação que o Nego e eu: passando a noite aqui por não ter pra onde ir. Certeza que algumas, porém, estão apenas esperando o horário de embarcar e seguir viagem.

Como não consigo dormir, meu pensamento vagueia aleatoriamente, visitando o passado distante e o passado recente, fazendo analogias, comparando, destrinchando os caminhos que me trouxeram até aqui. Cada vez mais eu tenho a certeza que nada acontece por acaso, nem mesmo as coisas ruins. O que é ruim e o que é bom, de fato? Pensando somente na minha vida, todas as coisas ruins mostraram-se boas no longo prazo. Talvez por isso eu não guarde mágoas de ninguém.

Mas como acreditar que as coisas ruins que acontecem “fora” da minha vida, de magnitude quase infinita, podem ser boas também, no longo prazo? Coisas como guerras, genocídios, exploração e etc.? Como a morte pode ser coisa boa?

A julgar pela magnitude de tais acontecimentos, a explicação (e o tal do longo prazo) devem ser de tamanho igualmente grande. Tão grande que se torna difícil visualizar. Acho que nessa hora, a imaginação é nosso único recurso. Pelo menos é um recurso poderoso – antes da imaginação aceitar, o mundo não era redondo. Passou a ser quando uma pessoa o imaginou assim, e posteriormente, com os avanços científicos, foi possível provar tal “absurdo”.

Pois bem. Montando uma miscelânea com diversas coisas que tenho lido e assistido em forma de filmes e documentários, ao longo de minha vida, minha imaginação monta uma explicação mais ou menos assim: esse mundo em que vivemos “hoje” é um tipo de escola – estamos aqui para aprender. Como em qualquer escola, existem diversos níveis (séries) de aprendizado. Quando, finalmente, aprendemos o que devíamos aprender, morremos.

Mas nossa existência não acaba na morte.

Nosso aprendizado vai acontecendo por meio de experiências difíceis – existe algum aprendizado fácil? Muitas vezes sofremos com essas experiências difíceis. Esse é o ponto que me incomoda, o sofrimento. Já andei pensando e escrevendo sobre isso, já sei que o sofrimento ensina. Mas ainda me falta algo pra aceitar que seja assim. Quero encontrar algo por detrás do sofrimento que seja a coisa que de fato ensina, para aprender a anular o sofrimento, deixar só a dificuldade e assim seguir aprendendo sem me machucar tanto.

Aprender o quê?

A ser uma pessoa melhor. Cabe a cada indivíduo melhorar como pessoa, e assim garantir a evolução do ser humano como espécie. Não foi assim que chegamos até aqui? Graças ao esforço de indivíduos que almejaram ultrapassar suas limitações e despertar seu verdadeiro potencial?

A Bíblia diz que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança. Os ateus dizem o contrário. Pra mim, a ordem dos fatores não altera o produto. Se Deus nos criou de maneira divina, ou se o homem criou Deus de maneira humana, é certo que homem e Deus são feitos da mesma essência. Nós todos temos a mesma capacidade infinita de Deus – Jesus já dizia isso.

049

Salesópolis, São Paulo, Brasil, 12 de outubro de 2011

Em 2001, quando eu cursava o primeiro ano colegial (ensino médio), uma coincidência me acompanhava: sempre que algo importante acontecia em minha vida – como um primeiro beijo, um início de namoro – estava chovendo, ou tocando em algum lugar aquela música “Have You Ever Seen the Rain?” de uma das minhas bandas favoritas, o “Creedence Clearwater Revival”.

Naquele dia, em Salesópolis, eu posso dizer que aconteceu algo importante.

Garoava quando eu resolvi subir até o ponto mais alto de um morro que havia no sítio. O sítio, na verdade, está encravado num vale, onde há também uma represa. Lá do alto eu podia ver boa parte da extensão do lugar: podia ver a casa grande, onde vivia o dono e sua família, podia ver a casinha onde estávamos hospedados eu, o Nego e os amigos dele, o curral das vacas, o lugar onde ficavam as cabras e o pequeno lago artificial onde o Régis adorava pescar.

Alguns personagens importantes e famosos na história humana receberam “revelações” em morros, montes ou montanhas, reais ou alegóricos, como Moisés e Martin Luther King Jr. Naquele dia eu tive uma "revelação" também, e ela chegou até mim através de algumas palavras do Nego.

- Cara, olha pra tudo isso! Olha a perfeição da natureza, de todas as coisas! Não tem como não acreditar na existência de um ser que tenha criado o mundo. É tudo muito bem bolado pra ser obra da casualidade... - falo.

- Meu, você fala mais em Deus que muito crente que eu conheço!

- Hehehe... - sorriso amarelo.

- Sério! Você seria um exemplo de crente.

- Hahaha! Duvido! Por mais que eu siga tentando ser uma pessoa melhor, eu ainda tô muito longe de ser um exemplo pra alguém. E você, como poucos, sabe disso.

- Mas é isso que importa! Tentar! O pessoal que tá na igreja sequer pensa em tentar ser uma pessoa melhor. Pelo menos não com sinceridade e esforço.

- É isso que eu não entendo na igreja! Tipo, o pessoal fala nisso o tempo todo, mas não transforma a palavra em ato.

- Não é bem assim...o pessoal que vai à igreja está tentando. Acontece que eles, assim como nós, são imperfeitos. A igreja é feita de e para gente imperfeita, e essa é sua razão de ser.

- E você não pensa em voltar pra igreja?

- Não...acho que fica na igreja quem ainda precisa dela pra praticar a fé. Quando as pessoas aprendem a praticar a fé sem precisar da igreja, elas acabam se afastando, pois o local (o símbolo) não é mais necessário para chegar a Deus...

- Nunca tinha pensado assim...

De fato, praticar a fé é algo muito difícil, e sem dúvida alguns símbolos como lugares, imagens e mesmo rituais são coisas que auxiliam essa prática. Ter fé em algo concreto é mais fácil, talvez esse seja um primeiro estágio no “ter fé”.

Se a razão de ser da igreja é auxiliar as pessoas imperfeitas (como todos somos) a ter fé, e por meio da fé tornarem-se pessoas melhores, não podemos esperar que a própria igreja seja perfeita. Tampouco podemos ignorar o bem que a igreja faz na vida das pessoas. Sim, eu sei que faz mal também. Mas eles estão tentando, melhor que criticar fazendo do movimento da língua afiada a única ação para melhorar o mundo.

Penso que a igreja precisa, novamente, ser reformada, reinventada, mas não eliminada. O exercício da fé e da espiritualidade foi e sempre será necessário na vida do homem.

sexta-feira, 11 de março de 2011

048

Montevidéu, Uruguai, 10 de janeiro de 2011

A praça fica próxima à famosa rua de pedestres chamada Sarandi.

A rua é destino quase que obrigatório para todos os turistas que vêm a Montevidéu, talvez por cruzar o bairro da Cidade Velha quase de ponta a ponta – na (única) parte bonita do bairro, óbvio – ou talvez por estar repleta de restaurantes e vendedores ambulantes de artesanatos e afins.

A praça é linda: um vasto campo gramado cortado aqui e ali por alguns caminhozinhos de saibro, repleto de árvores enormes que proporcionam uma sobra muito agradável, e bancos de madeira localizados estrategicamente abaixo destas, para que o sol não agrida aqueles que procuram um momento de descanso. Pássaros cantam em algum lugar acima de nossas cabeças melodias cruzadas, porém lindas e alegres. Pombos andam pra lá e pra cá à procura de alguma alma caridosa que possa lhes dar um pedaço de pão.

Enquanto esperamos a Anni – que precisava terminar uns afazeres antes de poder caminhar um pouco conosco – eu e o Nego conversamos, entre uma música e outra que eu toco no violão e ele canta.

- O povo lá em casa sempre fala que eu tenho muita sorte... – diz o Nego.

- Por quê?

- Porque eu sempre consigo as coisas que quero, ou que preciso.

- Eu também já ouvi da minha família que tenho muita sorte, ou que tenho o “rabo virado pra lua”. Mas quer saber? Eu acredito que essa nossa sorte vem do fato de a gente estar sempre ajudando as pessoas ao nosso redor...

- Verdade! Na igreja eu aprendi que isso é a lei da semeadura. O que você faz aqui, ou seja, o que você planta, é exatamente o que você colhe, o que volta pra você depois. Sendo assim, se a gente tem sorte de encontrar pessoas pra nos ajudar, é porque a gente tem ajudado muitas pessoas...

- Eu também acredito nisso. Eu li num livro da Seicho-No-Ie (uma religião) que essa é a lei da causalidade, ou seja, lei de causa e efeito. Toda ação tem uma reação igual e contrária – acho que já ouvi isso até em aula de física. Isso quer dizer que as coisas que acontecem em nossa vida são um reflexo de nossas atitudes. No fim as religiões querem dizer a mesma coisa, né?

- Verdade...

- Acho que é por isso que tanta gente, tantos pensadores, tantos filósofos sempre falaram que o segredo está dentro da gente. Tudo começa dentro da gente. Se a gente está infeliz, se está atraindo situações infelizes pra nossa vida, é porque estamos agindo de maneira propícia a isso. Se queremos atrair coisas boas, devemos praticar o bem. Claro que essa prática deve ser feita de maneira espontânea e sem interesse. Não acho que tenha o mesmo valor se a pessoa pensar: “vou fazer bem ao fulano pra receber coisas boas de ciclano”. Acho que intenção influencia bastante. Nesse caso que citei, a pessoa acabará atraindo pessoas interesseiras, e não coisas boas...

- Nossa, a igreja ta cheia de pessoas assim, interesseiras, que nunca praticam o evangelho, e quando o fazem sempre visam alguma coisa em troca...

- Pois é, eu não entendia essa e outras atitudes dos crentes até aquele dia que a gente conversou naquele sítio, em Salesópolis (interior de São Paulo, Brasil)...

Nesse momento eu vejo os olhos azuis da Anni se aproximando. Dessa vez, porém, o sorriso dela irradia uma luz comparável à luz de seus olhos. Paro de falar com o Nego no mesmo instante. Acho que paro de respirar também. Na verdade, acho que o mundo todo está parado, acompanhando ela caminhar até a gente...

quinta-feira, 10 de março de 2011

047

Montevidéu, Uruguai, 10 de janeiro de 2011

Coloco o cartão internacional da minha mãe no caixa automático, espero uns segundos e coloco a senha. Escolho a rede de bancos LINK, a opção de saque em pesos uruguaios e digito o valor. O dinheiro não vem – no lugar dele, uma mensagem dizendo que a transação não pôde ser realizada. Tento tudo outra vez, com o mesmo insucesso. Uma terceira vez, e nada.

- Nego, você tem certeza que a tua mãe depositou o dinheiro? – pergunto.

A gente viajou para o Uruguai quase sem dinheiro, confiando que o dinheiro depositado pela dona Helena, mãe do Nego, fosse estar disponível já naquele dia. Agora, porém, tudo indica que as coisas não correram como a gente esperava.

- Sim, eu tenho certeza! Ela sempre faz as coisas que promete!

- Não seria bom a gente tentar entrar em contato com ela pela internet, pra confirmar o dia que ela depositou, e tentar descobrir porque o dinheiro ainda não está disponível?

- Sim, também acho. Vamos ali na lan house.

O Terminal Rodoviário Trés Cruces estava do mesmo jeito que a gente o havia deixado poucos dias atrás, quando voltamos para Buenos Aires. Agora, porém, estando só o Nego e eu ali, com pretensões de viver em Montevidéu – e não apenas conhecer, como fizemos naquela viagem com o Leo – o clima era outro.

Nós entramos na lan house do terminal, pedimos uma máquina e conectamos o Skype do Nego. Não tem ninguém da família dele online. Ele então decide mandar um email pra Tati, sua irmã, pedindo pra ela entrar em contato com a dona Helena e perguntar pra ela sobre o depósito, e mandar a resposta pra gente.

- E agora, o que a gente faz? – pergunto ao Nego.

- A, vamos dar uma volta lá na Cidade Velha, procurar um lugar pra ficar. Depois a gente vê o email pra ler a resposta da Tati.

- Beleza. Mas eu acho que a gente deve deixar a bagagem aqui no guarda-volume do terminal, porque eu não tô afim de passar aperreio carregando todo esse peso de novo!

Depois de uma breve discussão sobre tempo e valor, a gente decide que o melhor é deixar as bagagens no terminal por um período de 24 horas. Vai que alguma coisa dá errado...

Guardamos a bagagem, saímos do terminal e pegamos um ônibus para Cidade Velha (bairro antigo de Montevidéu). Nós viemos para o Uruguai sem saber onde vamos ficar. Sem dinheiro. Sem nada na cabeça. O coração, porém, está cheio de fé em Deus e amor pela aventura, o que no fim das contas me parece a melhor forma de viajar, nesse momento. E de encontrar aquilo que estou buscando: a mim mesmo.

- Cara, dá pra acreditar nisso? - penso alto.

- No quê? – pergunta o Nego.

- A gente é maluco! Olha o que estamos fazendo!

- Pois é...

Caminhando entre os edifícios antigos, da era colonial, que deram início à cidade de Montevidéu, o sol irradia um calor quase insuportável. Olhando além, até onde a vista alcança, pode-se notar aquela distorção espectral causada pelo ar quente que sobe do asfalto das ruas estreitas.

- Será que a gente vai achar um aluguel tão baratinho, como aquele de Buenos Aires? – pergunta o Nego.

- Sei lá...a Anni disse que o aluguel por aqui é mais caro... – Anni é a moça bonita, dos olhos azuis, que conhecemos no mesmo hostel onde conhecemos a Flori.

- E a Anni? Será que a gente encontra ela por aqui?

- Pode até ser, ela me falou que mora num hostel aqui na Cidade Velha...

Caminhamos mais um tempo, jogando conversa fora, quando avistamos a primeira placa oferecendo quartos para alugar. Entramos. Conversamos e saímos. Nesse lugar eles não alugam por mês. Andamos um pouco mais e achamos outro lugar, muito caro. Na terceira tentativa, encontramos algo que podemos pagar.

Ao entrar na pensão, a primeira impressão é de que o lugar é uma zona. O prédio é antigo – como não poderia deixar de ser. O hall de entrada tem um pé direito muito, mas MUITO alto. O teto é feito de qualquer material transparente que, sujo, proporciona uma iluminação fraca, quase lúgubre. O lugar está todo bagunçado, com móveis e aparatos eletrônicos – que certamente não funcionam – empilhados para todo lado. As paredes cor de musgo não veem uma pintura há muito tempo.

- Olha Nego, tem até um piano ali no meio das muambas! Vai lá tocar um pouco!

- Hehehe – sorriso amarelo – gracinha!

O encarregado da pensão nos leva para ver o quarto disponível. Subimos um lance de escadas e, no primeiro andar, ele nos mostra um quarto simples, porém arrumado. Pergunto o preço, e descarto. Muito caro pro nosso bolso. De maneira estranha, quase insegura, ele comenta de outro quarto que tem pra alugar. Diz que esse quarto ainda está ocupado, mas que o rapaz vai sair nesse mesmo dia. Peço pra ver o quarto.

Subimos outro lance de escadas, e mais outro. Isso é um paradoxo: teoricamente, quanto mais a gente sobe, mais perto do Céu fica. Nesse caso, cada degrau me dá a sensação de que o INFERNO está mais próximo. O local vai mostrando que nada é tão feio e mal cuidado a ponto de não poder ficar mais feio e mal cuidado. O verde musgo das paredes vai perdendo espaço para o negrume da sujeira. No chão, o piso irregular tem uma cerâmica tão gasta que, em alguns pontos, já ganhou uma coloração vermelho-barro.

Os quartos estão todos com as portas abertas (talvez pela falta de janela somada à necessidade de ventilação), onde um lençol estendido nos impede de olhar o que se passa dentro dos cômodos. Vozes de pessoas e de televisores podem ser ouvidas, o que denuncia que de fato existe gente capaz de viver num local como esse.

No meio da subida, algo totalmente inesperado: uma luz no fim do túnel. O último lance de escadas nos levou para a laje do edifício. Ali, no meio de escombros que inexplicavelmente tomam conta do cenário, o encarregado nos aponta uma pequena construção, comparável a uma edícula, e diz que aquele é o quarto mais barato.

Sem nenhuma palavra, meu olhar cruza com o do Nego. Eu sei que ele aprova o local, assim como eu. Certeza que na cabeça dele ta passando algo como “é o que tem pra hoje”, misturado com “se ta na chuva, é pra se molhar”.

Peço pra ver o quarto por dentro, o que não é possível, pois ainda tem uma pessoa morando lá. Assim mesmo, digo ao encarregado que possivelmente vamos alugar o quarto, mas que precisamos sacar o dinheiro para poder fechar negócio.

Saímos da pensão sem muito o que fazer da vida – até conseguir sacar o dinheiro, não podemos resolver nada. Vamos caminhando pelas ruas da Cidade Velha, jogando conversa fora, quando o Nego diz:

- Nego, olha a Anni ali.

- A ta, acredito! – falo.

- Sério, olha lá!

Quando olho pro outro lado da rua, a moça bonita dos olhos azuis está com um sorriso enorme, olhando pra mim. Quem pode explicar um encontro como esse?