segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

043

São Paulo, Brasil, 2000.

Eu sempre gostei muito de futebol. Minha infância foi dividida entre o jogo real nas quadras do condomínio onde vivia, da escola e tantas outras, e entre o jogo virtual, no vídeo-game e/ou no computador. Até futebol de botão eu jogava, sozinho, manejando as duas equipes. Em minhas tardes solitárias no apartamento onde morei até os dezoito anos, eu chegava a jogar futebol com bolinhas de tênis, fazendo um gol com caixa de sapato e barreiras de chinelo, que me atrapalhavam nas “cobranças de faltas”.

Quando não estava jogando em nenhuma dessas “modalidades” que citei, estava grudado na TV assistindo programas esportivos em todos os horários, jogos ao vivo de qualquer time – quando jogava o meu time, ou a seleção, mal piscava os olhos – e até jogos “clássicos”, antigos, gravados e exibidos em programas como “Grandes Momentos do Esporte”, da TV cultura.

Naquela época, eu não fazia idéia que “o mundo era ali ao lado”, e que eu poderia conhecer outros lugares, outras pessoas. Minha vida até então era muito fechada em mim mesmo. E meu sonho era ser jogador de futebol.

Minha mãe sabia disso. No começo daquele ano de 2000, ela me falou:

- Robson, eu gostaria de pagar um curso pra você.

- Um curso?

- Sim. Eu coloquei seu irmão pra fazer inglês, então gostaria de pagar um curso pra você também.

- A, legal.

Eu não via a menor necessidade de estudar inglês, naquela época. Desnecessário dizer o quanto eu estava equivocado.

- Mas você não precisa fazer inglês, se não quiser. Pode escolher outra coisa.

- Sério? Então eu quero fazer escolinha de futebol!

Era exatamente o tipo de coisa que minha mãe esperava ouvir.

Passei o ano treinando na escola de futebol do clube de funcionários da Eletropaulo. Jogava de volante, uma posição que eu não gostava nem um pouco. Com a bola, eu sempre ia mais pra frente – para desespero do treinador – e atuava quase como um meia ofensivo. Sem a bola, voltava rápido para a defesa e dava o primeiro combate no adversário, como um volante deve fazer.

O pai de um amigo meu (também treinador de equipes infanto-juvenis), ao assistir nosso jogo numa manhã nublada de domingo, comentou com o treinador que eu deveria jogar mais adiantado, que sabia distribuir bem a bola e que tinha um ótimo chute de longa distância. Eu não entendia porque o treinador me botava de volante, mas assim mesmo seguia suas instruções, pensando na equipe como um todo.

Nessa época eu li um livro chamado “Sabor de Vitória, do Fernando Vaz. Com o futebol como pano de fundo, o livro trabalha valores como lealdade, honestidade, perseverança, etc. Com certeza esse livro teve um papel importante na formação da minha personalidade – o li um sem-fim de vezes.

Assim como acontece com o personagem principal do livro (chamado Delem, se não me falha a memória), eu passei por um momento crítico num jogo importante. Numa jogada de contra-ataque, meu adversário me driblou, seguiu adiante e fez um gol. No mesmo instante meu treinador me tirou do jogo, aos gritos:

- Por que você não fez a falta?

Não respondi, ele não entenderia.

Hoje eu até entendo que a falta faz parte do jogo e pode ser usada como recurso (desde que não seja feita de forma violenta, claro), mas naquela época me parecia desonesto e não pude fazê-la. Importante não é discutir se é ou não honesto fazer falta no futebol. Importante é saber que sigo uma pessoa muito honesta com os outros, e sigo tentando ser, cada vez mais, honesto comigo mesmo.

É diferente ser honesto com os outros e ser honesto consigo mesmo. Numa situação onde você precisa ser honesto com outrem, geralmente você tem conhecimento da mentira e da verdade.

Quando a gente é desonesto consigo mesmo, o faz por desconhecer a verdade. É difícil olhar para si mesmo e saber quais são as razões que te move, que te motiva a fazer as escolhas que faz e a tomar as atitudes que toma.

Mesmo com esse episódio, o treinador me indicou para a principal equipe da minha categoria no clube da Eletropaulo. Aquele foi o auge da minha “carreira” futebolística, já que no ano anterior eu tinha participado de uma “peneira” (um teste) para entrar na mesma equipe e não tinha sido bem sucedido.

Naquele mesmo ano de 2000, minha paixão pelo futebol dividia espaço em meu coração com minha paixão pela Dani. Ambas as paixões tinham a mesma intensidade, a mesma importância para mim – pelo menos era isso que eu pensava e sentia. O futebol era a coisa mais importante, e a Dani era a pessoa mais importante.

E por ser ela a pessoa mais importante pra mim, eu resolvi fazer um “pacto” com Deus. Olhando pro céu, da janela do meu quarto no apartamento onde eu morava, eu observava a copa dos enormes eucaliptos - eternos na praça central do bairro – dançando ao sabor do vento, sob um céu negro e estrelado.

Com os olhos cheios de lágrimas, as quais também escorriam pelo meu rosto, eu falei pra Ele:

- Eu abro mão do futebol. Eu amo muito a Dani, abro mão do futebol que é a coisa mais importante pra mim, em troca de tê-la como namorada.

Eu não sei que valor teve essa atitude. Não sou jogador de futebol e tampouco namorei a Dani. A verdade é que eu não tinha nenhum e nem outro, então como poderia trocar esse por aquele?

Fato é que, ainda hoje, eu penso como seria ser jogador de futebol. Às vezes, penso até em estudar para ser técnico de futebol, ou jornalista esportivo. Como naquela época, eu ainda não consigo ser totalmente honesto comigo mesmo.

Talvez essa “renúncia” ao futebol tenha sido nada mais que uma demonstração da minha falta de fé – ser jogador de futebol é muito difícil. Talvez fazer um curso de treinador ou de jornalismo, agora, seja também uma demonstração da minha falta de fé – ser um músico consagrado é tão difícil quanto.

Mais difícil que qualquer coisa, porém, é ter fé em algo que acreditamos fora de nosso alcance – seja fé em Deus, seja fé em qualquer força superior ou mística, seja fé na realização de nossos sonhos.

O intelecto é inimigo da fé – pelo menos na grande maioria dos casos. Quanto mais uma pessoa se desenvolve intelectualmente, menor fica a sua capacidade de ter fé. Ter fé segue sendo um desafio mesmo pra mim, que já tive inúmeras demonstrações do poder construtivo e realizador que o simples fato de querer e acreditar em algo possui.

Eu quero seguir acreditando no meu sonho de ser um músico famoso. Eu quero ter fé que isso pode acontecer. Não é fácil acreditar nisso, e por isso mesmo eu sigo buscando algo pra fazer à parte da música.

O que me conforta é acreditar que, independente de qualquer coisa, Deus sabe o que é melhor pra mim, e qualquer que seja Seu plano, é um plano bom. Se até uma das mentes mais brilhantes que o mundo já viu, Albert Einstein, acreditava em Deus, fica fácil pra mim acreditar também.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

042

Montevidéu, Uruguai, 04 de janeiro de 2011

Caminhando pela orla da praia do Río de La Plata, em direção ao porto, baixo um céu azul sem nuvens, o assunto ganha um tom mais sério.

- Eu não sei até que ponto eu gostaria que minha música fosse comercial – fala o Leo.

- Por quê? – pergunto.

- Porque meu objetivo não é fazer música comercial, sei lá... – ele responde.

- O meu objetivo é fazer música o mais comercial possível! – falo.

- Sério? – ele pergunta.

- Sim! Eu acredito que, quanto mais comercial for, maior alcance terá e, quanto mais alcance tenha, mais eu vou poder fazer em prol do meu objetivo. Lembra que eu falei que quero levantar dinheiro para obras assistenciais e tal?

- Sim, eu lembro. Pensando assim, até que não seria tão mal fazer música bastante comercial...Eu só tenho medo de me deixar levar pela fama...

- Sim, eu também, é por isso que tenho feito tantos “treinamentos”, como ser vegetariano e tal.

- E você, Emerson, o que pensa? – Leo pergunta ao Nego.

- Eu não sei...acho que não tenho tanta vontade de ser tão famoso assim...- responde o Nego, meio hesitante.

- Será mesmo? Talvez você pense assim porque no fundo sente que não é capaz de conseguir atingir esse objetivo – fala o Leo.

- Acho que não, eu não tenho necessidade de ser tão famoso...- retruca o Nego.

- Imagina a seguinte situação: eu conheço alguns amigos que me falam que não têm vontade de comprar um carro porque não querem poluir o meio-ambiente. Talvez até seja verdade, mas a julgar pela vida pouco abastada que eles levam, isso me soa como uma desculpa. Eles não se acham capazes de comprar um carro, por isso falam essas coisas. Eu veria, de fato, uma preocupação com o meio-ambiente se um amigo que tem um carro abrisse mão do mesmo para andar de ônibus, entende? – explica o Leo.

- Mais ou menos...- fala o Nego.

- O que ele ta falando é que é muito mais fácil renunciar a algo quando a gente não tem e não acredita ser capaz de possuí-lo. Difícil mesmo é a gente batalhar, conseguir alguma coisa e depois abrir mão dela... – falo.

Eu nunca tinha pensado nas coisas sob esse ponto de vista. Tenho levado uma vida sem muito dinheiro, às vezes até difícil, e sempre acreditei estar fazendo isso por opção. Agora, porém, ao ouvir estas palavras do Leo, algo me incomoda: “será que eu estou, na verdade, me escondendo atrás de algumas desculpas por não acreditar ter capacidade de ser alguém rico, bem sucedido?” – me pergunto.

De fato, seria diferente ser um profissional bem sucedido, ter muito dinheiro, ser muito rico, e seguir levando essa vida simples. Faz bastante sentido o que fala T. Harv Eker em seus “Segredos da Mente Milionária”: é muito mais fácil ajudar as pessoas quando se tem dinheiro; como alguém que não tem nem para si vai poder ajudar outras pessoas?

Avistamos, ao lado do porto, um escritório da “Buquebus”, a empresa pela qual viajamos de Buenos Aires a Colonia del Sacramento. O Leo sugere que perguntemos se é possível trocar a passagem de volta, para sairmos de Montevideo com destino a Buenos Aires. Nós vamos, perguntamos, descobrimos que ficaria muito mais caro e rapidamente desistimos da idéia. Saímos do escritório e seguimos caminhando.

Chegamos no porto, e o cenário me fascina. No rio, a presença de um imponente navio de cruzeiro suscita em mim um dos meus desejos mais íntimos, quase primitivo: lançar-me ao mar. Talvez por ler muitos clássicos em minha infância/adolescência, como “Robinson Crusoé”, “Moby Dick” e “Vinte Mil Léguas Submarinas”, ou talvez por haver sido um marinheiro em outra vida (às vezes eu realmente acredito nisso), o fato é que navios me encantam tanto quanto tenho medo do mar (seguramente morri afogado nesta outra vida!).

Tiramos algumas fotos – muitas – e seguimos caminhando. Eu tenho certeza que não poderíamos estar ali, mas há algum tempo eu deixei de ser tão “rigorosamente certinho”. Às vezes as regras podem – e devem – ser quebradas. Muito do nosso desenvolvimento enquanto seres humanos se deve a isso.

Os milhares de “containers” coloridos, espalhados, empilhados ou por empilhar me levam àquelas cenas clássicas de filmes como “Máquina Mortífera” ou “A Hora do Hush” onde sempre há uma perseguição por lancha que acaba num porto, com muitos tiros, um mocinho ferido e um bandido morto/preso. Estar num lugar assim, que só conhecia pela televisão, me enche de uma alegria e um sentimento de “uno com o mundo” inexplicável.

Andamos um pouco mais, tiramos mais algumas – muitas – fotos (inclusive do Leo encima de uma empilhadeira) e, na hora de sair, minha suspeita se confirma:

- Onde vocês vão? – pergunta o guarda.

- A gente vai sair... – falo.

- Mas aqui não é saída de pedestres. O que vocês estão fazendo aqui?

- A gente foi no escritório do Buquebus – penso e falo rápido, sabendo que a desculpa certamente vai soar frágil e descabida, mas é o melhor que temos.

- E porque não saíram por lá, onde entraram? – guarda esperto.

- Hum...a gente queria conhecer o porto...

- O Porto não é aberto a visitação, caminhar por ele é proibido. Eu vou deixar vocês saírem por aqui, mas deveria fazer vocês voltarem.

Certeza que esse guarda tá acostumado com turistas.

***

A cozinha/refeitório do hostel está vazia, com exceção do Nego e do Leo, sentados nos computadores de uso coletivo, e de mim, lendo um livro e fazendo um lanche. A moça dos olhos azuis já passou por aqui algumas vezes, nossos olhares se cruzaram em todas.

Uma outra moça, loira também, senta numa mesa próxima a minha, com uma garrafa térmica e os aparatos para tomar mate: uma cumbuquinha onde coloca a erva-mate moída, e uma espécie de canudo de alumínio onde uma das extremidades tem uma bolota cheia de furinhos, pelo qual se toma o líquido.

Tomar mate é um costume argentino e uruguaio. Coloca-se erva e água quente na cumbuca, e pelo canudinho – cuja bolota furada impede a passagem da erva, mas permite a passagem do líquido – se toma o chá. Alguns tomam com açúcar, e esse é chamado “mate doce”.

- Você aceita um pedaço de bolo? – pergunto a moça.

- Não, obrigada. – ela responde.

- De onde você é? – pergunto.

- Argentina, e você?

- Eu sou do Brasil, mas estou vivendo na Argentina agora!

- Mesmo? Em que cidade?

- Buenos Aires, e você?

- Também...

Nego e Leo se juntam a conversa. O irmão da moça – Floriana é o nome dela – aparece pouco depois e conversamos todos por um bom tempo.

***

Deitado na cama antes de dormir, conversando com o Nego, ele faz uma pergunta que ecoa em minha cabeça:

- Por que você se machuca tanto com todas essas dúvidas, conflitos e treinamentos?

domingo, 20 de fevereiro de 2011

041

Londres, Inglaterra, 12 de maio de 2010

Depois de pouco mais de 24 horas em trânsito, eu finalmente cheguei na casa do meu irmão em Londres. Logo ele e a Bru me alojaram no quarto que mais tarde seria o quarto do meu sobrinho, que estava por nascer.

Deitado no meu colchão, eu estava muito cansado, porém não conseguia dormir – tinha algumas coisas povoando meu pensamento que me impediam de descansar antes de serem postas no papel, digo, no computador.

Sair do Brasil deixando família e amigos para traz, pouco depois de terminar um relacionamento de 7 anos, mexeu bastante comigo. Me fez aprender algumas coisas, as quais eu tinha – e tenho – desejo de compartilhar com as pessoas.

Liguei o notebook e escrevi o seguinte texto, que logo foi publicado em meu primeiro blog, “O Mundo de Robson”:

Eu sou o desapego

De volta pr'esta terra fria e distante não consigo deixar de pensar numa coisa: eu sou o desapego. Criei, pra tentar explicar a tortuosidade da vida, uma teoria. A teoria da espiral. Coisa básica: nós sempre rodamos e sempre chegamos no mesmo ponto, porém, um nível acima. Alguns dirão que podemos também descer os níveis, mas eu não penso assim. Penso que estamos sempre subindo, mesmo quando parecemos descer, assim como os números negativos que tendem a zero e depois deste passam a ser positivos. O fundo do poço é sempre o meio do caminho, não o final. Ainda que alguns insistam em ficar por lá.

Pois bem. Eu sou o desapego. O Sr. Michaelis assim define o desapego:

de.sa.pe.go
(
ê) sm (des+apego) 1 Desafeição, desamor, indiferença. 2 Desinteresse. 3Desprendimento. Var: despego. Antôn (acepções 1 e 2): amor, interesse

Eu sou o desapego nº3. Desprendimento. Os outros dois, pra mim, não existem. Explico: há que se existir muita afeição, muito amor e muito interesse para se ter coragem de desprender-se das pessoas amadas tirando, assim, de suas pernas, os grilhões que lhe impedem o desenvolvimento. Sou o desprendimento porque gosto da liberdade minha e alheia. A liberdade faz parte da genealogia do crescimento, este a força que nos impulsiona na espiral da vida.

É claro que nem sempre pensei assim. Na verdade, sequer pensei sobre isso por grande parte da minha vida e, por isso mesmo, agi sempre de forma totalmente inversa. Tive a sorte, porém, de encontrar pessoas que, conscientemente ou não, me fizeram o grande favor de libertar-me dos grilhões chamados “relacionamentos humanos”.

Sim, os relacionamentos humanos são, em sua maioria, grilhões que nos acorrentam em determinados tempo e espaço, nos impedindo de trilhar nosso caminho pela espiral da vida. Isso acontece porque o ser humano é carente. O ser humano é um animal carente, tem medo de ficar sozinho. Pelo menos o ser humano atual. Por isso tendem a se apegar uns aos outros, de forma que a força gravitacional dessa união impede a cada indivíduo que dela faça parte de alçar seu próprio voo.

Os relacionamentos humanos precisam ser repensados, re-sentidos (não ressentidos).

Em primeiro lugar, devemos compreender a teoria da espiral. Nós SEMPRE voltamos ao mesmo ponto, o que quer dizer que SEMPRE vamos reencontrar aquelas pessoas especiais, que marcaram nossa vida. Ter esta convicção torna tudo mais fácil. Eu sei que vou te reencontrar, e que você (e eu) estará um nível acima na espiral, terá crescido.

Saber que vais reencontrar estas pessoas, por si só, já é um bom pensamento. Saber que vais reencontrar, além das pessoas, um relacionamento mais maduro e portanto mais prazeroso, é motivo suficiente pra deixá-las viver o que têm pra viver. Paralelamente, viverás também o que tens pra viver, e amaducerer também a ti próprio.

O segundo ponto é quanto a memória. A memória é testemunha-chave da consciência, nosso advogado-do-diabo (chamado por Freud de superego). Portanto, tua memória deve registrar bons momentos vividos ao lado das pessoas que amas, pois é muito mais fácil desprender-te das pessoas quando tens certeza de que não perdeste tempo precioso com bobagens. Tempo perdido nós sempre vamos tentar recuperar. Impossível. Recuperar tempo perdido é perder tempo vindouro, o que dá na mesma, o prejuízo está sempre lá.

O desapego deve ser praticado em todos os relacionamentos. Tenho que dizer que o desapego não se aplica apenas aos casos cuja separação é o melhor a ser feito. Ele se aplica mesmo em relacionamentos cuja presença é imprescindível, como o casamento.

O último ponto, porém a ordem dos fatores não altera o produto, é o seguinte: para que consigas desapegar-te das pessoas, deves estar muito bem consigo mesmo. Deves pensar, estar ciente e consciente de tua própria vida, do que tens e do que precisas, para que possas viver tua própria vida com propriedade


***

Mais tranqüilo, depois de pôr pra fora o que me inquietava por dentro, eu consegui dormir. Mal sabia eu que o despertar para o desapego era só o primeiro passo de uma caminhada que seguiria por toda a vida, e que talvez esse primeiro passo fosse o mais fácil.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

040

Montevidéu, Uruguai, 03 de janeiro de 2011

Ouço o Nego me chamando e desperto. Dormi muito bem, apesar de dormir tão pouco – cerca de duas horas. Meu corpo protesta, mas assim mesmo eu me levanto da confortável poltrona do ônibus de viagem, pego meu violão e desço do coletivo no terminal improvisado em frente ao Estádio Centenário, este último famoso por sediar jogos da Copa Libertadores da América, um tradicional torneio de futebol da América Latina.

Depois de alguns minutos caminhando na rodovia pela manhã, a gente resolveu pegar um ônibus para Montevidéu nessas paradas de beira de estrada – a gente simplesmente não agüentaria fazer todo o percurso andando e pedindo carona.

- Che, eu quero tirar foto em frente ao estádio! – falo.

Caminhamos até a entrada principal do estádio e ali tiramos algumas fotos. Depois disso, pegamos um ônibus municipal até o terminal rodoviário Tres Cruces, o principal da cidade, para sacar algum dinheiro e resolver o que fazer.

O terminal Três Cruces é um típico terminal rodoviário de cidade grande, apinhado de gente chegando e partindo dia e noite. É dividido em dois pisos; no andar térreo se encontram as empresas de ônibus e agências de viagem, as salas de espera, algumas lanchonetes e pequenas lojas de “souvenirs”. No primeiro andar estão as lojas maiores que vendem roupas e artigos eletrônicos, e os restaurantes.

- Acho que vou perguntar pra’quelas moças ali se elas sabem algum lugar pra gente ficar. – diz o Nego, depois que a gente passa no caixa eletrônico.

- Beleza, vai lá com o Leo que eu fico aqui com as coisas. – respondo.

- Ê Nego, ta correndo da mulherada mesmo hein? Hahaha! – ele fala.

Alguns segundos depois eles voltam com a valiosa informação:

- Elas falaram que a gente acha Hostel baratinho pra ficar na Cidade Velha. Pra ir pra lá, a gente pode pegar qualquer ônibus aqui fora do terminal – diz o Nego.

- Jóia, então vamos pra lá! – falo.

- Che, não seria bom a gente comprar alguma coisa pra comer? – pergunta o Leo.

- Pode ser. Mas pelo amor de Deus, não vamos comprar panetone de novo! – falo.

- Hahahaha! Eu também não agüento mais comer panetone – diz o Leo.

- Nem eu – concorda o Nego.

Caminhamos até o supermercado, compramos salgadinhos, bolachas e suco. Logo depois, pegamos um ônibus para Cidade Velha. O valor da passagem – dezessete pesos uruguaios – assusta, mesmo sabendo que a moeda uruguaia é desvalorizada em relação à moeda argentina.

Cidade Velha é um bairro antigo de Montevidéu, que fica na margem do rio de La Plata. A cidade começou aqui, como denunciam os antigos edifícios da era colonial. Nessa época, inclusive, a cidade era rodeada por uma muralha, hoje inexistente.

Montevidéu foi fundada pelo governo de Buenos Aires, que andava preocupado em fortalecer sua presença na região. Anos depois, a cidade se tornaria a capital de um novo país, a República Oriental do Uruguai.

Viajar assim, a esmo, sem planos, sem ao menos ter onde ficar, é uma experiência realmente incrível. Apesar de todas as adversidades, eu estou tranqüilo. Eu simplesmente sei que tudo vai dar certo, e que nós vamos fazer exatamente aquilo que devemos fazer.

Ainda não sei se acredito no destino ou no acaso. De qualquer maneira, isso não importa muito. Seja como for, nossa vida se move de maneira muito sábia. As coisas que acontecem sempre encontram um propósito, e esse propósito é sempre bom. Dificilmente enxergamos isso em nosso cotidiano comum e rotineiro. Mas isso fica bem claro quando abrimos mão do controle e simplesmente caminhamos ao sabor da correnteza.

- Vamos entrar aqui pra perguntar o preço? – pergunta o Nego.

- Vamos sim! – responde o Leo.

Esse é o terceiro lugar que entramos pra pedir informação. É também o mais barato, por isso ficamos. Como ainda é cedo para fazer o check-in, nós deixamos a bagagem na recepção e saímos para dar uma volta pelo bairro.

- Eu quero ir para a praia! – diz o Leo.

- Tudo bem. Eu tô vendo o rio daqui, vamos lá – falo.

Caminhamos até o rio, mas nesse ponto não há praia, apenas uma avenida na margem do rio, acima do nível deste, e por isso nem nenhum acesso ao mesmo. Sentados num ponto do calçadão e ficamos ali, contemplando o mundaréu de água e o céu azul e ensolarado.

***

Depois de fazer o check-in e de dormir um pouco, a gente resolve sair pra comer alguma coisa. Eu sou o primeiro a terminar de tomar banho e se vestir, por isso pego meu livro e vou para a sala de estar do Hostel. Me sento no sofá encostado na parede do lado oposto da porta de acesso ao cômodo, à partir da cozinha/refeitório.

Lendo o livro mas sempre atento ao movimento, eu levanto os olhos para ver o que acontece no ambiente quando meu olhar cruza com o mais belo par de olhos azuis que eu já vi na minha vida. Eles, no entando, rapidamente fogem dos meus. Volto a ler meu livro.

- Che, vamos? – pergunta o Leo, ao aparecer na porta da sala.

- Sim – respondo – vou guardar o livro e já desço.

Saio da sala, passo pela cozinha/refeitório e, ao passar pela recepção, vejo novamente a dona daqueles lindos olhos. Seus rosto – e todo o resto – está à altura. A moça é linda. Mais um encontro fugaz de olhares.

Sigo meu caminho, subo a escada, guardo meu livro, desço e saímos.

- Eu tava falando com a moça da recepção, ela é do Peru também! – fala o Leo.

- Aquela loira, de olhos azuis? – pergunto.

- Não, a outra, uma morena. – ele responde.

- Hum, essa eu não vi... – falo.

- Eu perguntei pra ela onde a gente pode encontrar o tal do Chivito, e ela falou que andando aí pela avenida 18 de julho a gente acha! – diz o Leo. Ele andou perguntando sobre uma comida típica do Uruguai, descobriu que o Chivito é quase um símbolo nacional, e ficou com vontade de comê-lo.

A noite está muito agradável, com uma brisa fresca soprando. A gente vai caminhando pela avenida 18 de julho, até achar um restaurante. Entramos e saímos na mesma hora: o tal do Chivito é caro pro nosso bolso. Andamos mais um pouco e resolvemos comer um sanduíche - que segundo o atendente é um Chivito com outro nome – num trailer-lanchonete, parado numa praça.

Nunca comi um sanduíche tão bom. Também nunca tinha comido tão mal por tanto tempo, antes desse sanduíche. Acho que isso influenciou meu julgamento, de certa forma...

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

039

Algum ponto entre Colonia e Montevidéu, Uruguai, 03 de janeiro de 2011

Quando a fumaça finalmente se foi, nós nos sentamos e comemos panetone (outra vez). Depois da “janta”, eu fui o primeiro a dormir – não, a cochilar, porque dormi apenas uma hora antes de despertar ouvindo o Nego e o Leo conversando. Olho no relógio, faltam dez para a meia-noite.

- Che, quem quer dormir agora? – pergunto.

- Dorme mais. Você não dormiu quase nada! – fala o Nego.

- Não, não vou conseguir dormir de novo, por enquanto. Melhor um de vocês aproveitar para dormir também.

Ao ouvir essas palavras, o Leo resolve deitar um pouco. Ele está muito cansado também. Fico de vigília com o Nego, e o Nego com seu pau em mãos, como se estivesse esperando o pior. A verdade é que eu estou com um pouco de medo também, mesmo acreditando que nada de mal vá acontecer.

- Enquanto você dormia, a gente ouviu alguma coisa. Parecia um animal se aproximando – diz o Nego.

- É? E aí? – pergunto.

- Aí nada. Não vimos nada e o barulho parou.

- Hum...

Ficamos em silêncio. Noto que o Nego quer seguir conversando, mas eu não tenho vontade de ficar sussurrando, e falar mais alto que isso impede o Leo de dormir. Eu me encosto na parede ao lado da janela e fico olhando o céu.

A ausência de luz artificial somada a ausência de poluição (ou pelo menos de “muita” poluição) faz do céu algo quase irreconhecível para mim. Apesar do negrume intenso da noite, a enorme quantidade de estrelas que se pode ver cria uma tonalidade quase etérea, misturando o preto do espaço ao branco das ditas cujas, junto com o azul escuro da atmosfera fracamente iluminada que se pode notar no entorno dos milhares de pontinhos luminosos.

“A Táta iria adorar ver isso” – penso.

- Parece o céu que a gente viu em Trindade, né? – o Nego puxa assunto outra vez.

- Sim, parece. Fala baixo. – digo.

Essa frieza basta para tirar do Nego o ânimo de conversar – pelo menos por enquanto.

***

O Nego está dormindo também. Essa noite está sendo muito longa. Talvez por não estar fazendo nada, só pensando na vida; talvez por estar com medo de que algo aconteça; talvez por estar cansado e não agüentar mais ficar em pé; talvez por estar morrendo de sono... Não sei exatamente porque, mas é fato que esta noite está maior que o normal.

“É isso que eu devo fazer. Esse não é o momento. Muita água vai rolar debaixo dessa ponte. Depois, o que tiver que ser, será” – penso.

Noto dois pontinhos verde-fosforecentes (como interruptores) voando entre o mato alto e as árvores perto da casa. Há muitos anos eu não via vaga-lumes – a última vez foi no condomínio onde vivia em São Paulo, numa das freqüentes noites em que ficávamos sem energia elétrica. Lembro que fazíamos lanternas com latas de achocolatado em pó e vela, pegávamos um pote de vidro de maionese e saíamos para “caçar” os bichinhos alados de bumbum luminoso.

Da maneira como surgiram, desaparecem: de repente. Volto a olhar para o céu quando noto uma estrela cadente. Dizem que devemos fazer um pedido nessa hora, que ele certamente será realizado. Eu adoraria pedir outra coisa, mas não consigo. Em vez de desejar o que realmente quero, eu peço: “espero que a Táta possa entender os meus motivos”. Eu estou decidido.

Ainda são uma e quarenta da manhã.

***

Agora o Leo está acordado também. Ele, como o Nego, não gosta de – ou não consegue – ficar calado por muito tempo.

- Olha che! Um OVNI! – ele fala.

De fato há um ponto luminoso se mexendo no céu, mas a julgar pelo seu movimento retilíneo de velocidade constante, não me parece um OVNI. Talvez seja outro meteorito se consumindo em chamas, devido ao atrito, ao entrar em nossa atmosfera.

- Uma vez eu tive um sonho, mas não tenho certeza que era sonho. Eu tava na minha cama quando tudo começou a tremer, e entrou uma luz forte pela janela. Eu comecei a escutar um som estranho, mas eu entendia que era alguma coisa falando comigo...

Não sei se ele realmente acredita nisso ou se está brincando.

Olho no relógio: três e meia da manhã. Que noite longa.

***

Quatro e quarenta e cinco. O Leo está dormindo de novo. O Nego se levanta e manda eu deitar um pouco. Faço o que ele diz.

***

Parece um pesadelo, mas não é. Acordo sem acreditar no que está acontecendo. Totalmente desprotegido, só me resta correr e procurar um lugar para me abrigar. Noto que o Nego também está acordando desnorteado com a situação, tentando entender o que está acontecendo com o Leo que ficou de vigília no último turno antes de amanhecer. A gente não devia tê-lo deixado sozinho.

- Não acredito! – falo pro Nego.

- Nem eu! – ele responde.

A gente levanta rápido.

- Você ta vendo isso? – pergunto.

- Sim! – ele responde.

Não é uma visão. Não é um pesadelo. De fato isso está acontecendo. O Leo acendeu de novo a fogueira dentro do nosso quartinho, que já está cheio de fumaça outra vez. Desespero e incredulidade tentam, mas o que me domina – novamente – é o fumaceiro desgraçado que toma conta do lugar.

- Che, por que você acendeu essa fogueira de novo? – pergunto ao Leo.

- É que eu fiquei com frio...

Sem outra escolha, arrumamos as coisas e pegamos a estrada novamente. São seis e pouco da manhã. O dia está amanhecendo e promete ser muito lindo.