segunda-feira, 22 de novembro de 2010

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Buenos Aires, Argentina, 05 de novembro de 2010.


Agora que o Nego e a Prima finalmente caíram no sono eu consigo pensar um pouco sobre tudo isso que está acontecendo. Sinto-me feliz. Sinto que finalmente estou fazendo aquilo que sempre quis, ou que sempre precisei – depende do ponto de vista. A verdade é que selei meu destino antes mesmo de entender a magnitude do que reservei pra mim mesmo.

O cenário não poderia ser mais comovente: na terceira classe do trem, antigo, os assentos – apesar de estofados em couro – são um tanto desconfortáveis para uma viajem de 6 ou 7 horas, como essa de Buenos Aires à Mar Del Plata, esta última uma cidade litorânea banhada pelo Atlântico Sul. O teto, revestido de madeira como todo o interior do vagão, exibe alguns lustres antigos, assim como alguns ventiladores antigos também – talvez não tão antigos como a própria ferrovia argentina cuja construção teve início em meados de 1855 (e que já foi uma das mais extensas do mundo, e permanece como a maior da América do Sul) mas que ainda assim sustenta uma idade respeitável. A fraca iluminação dá um toque ainda mais nostálgico ao cenário.

Nosso assento tem capacidade para três pessoas e nós nos acomodamos de forma que o Nego sentou-se na janela, eu sentei-me no meio e a Prima ao meu lado direito, no corredor. No assento da frente (de mesma capacidade que o nosso) viaja uma família com nada menos que cinco pessoas, composta por (talvez) o avô, o pai, a mãe e duas garotinhas com quatro anos, no máximo. Não sei como cabem os cinco nesse banco, junto com as bolsas de fraldas e mamadeiras, mas é fato que eles todos dormem profundamente – com exceção da mãe, que se mantém alerta para acudir as filhas no que se faça necessário. Elas, as garotas, dormem no colo – uma do pai e outra da mãe – de forma que apresentam uma elasticidade invejável e, mesmo com todo esse desconforto, seus rostinhos imprimem a alegria e a inocência que só as crianças podem experimentar.

Observando essas mocinhas de traços indígenas (pele parda, olhinhos puxados e cabelos negros escorridos, cortados com franjinhas) meu pensamento vai longe, não consigo deixar de pensar no meu sobrinho, nascido há pouco mais de um mês em Londres e que ainda não tive a chance de conhecer – um menino lindo, saudável e muito fofinho, como denunciam suas fotos. Também não posso deixar de traçar um paralelo entra as vidas dessas três crianças e pensar nas oportunidades que cada uma delas terá no decorrer da vida. Como seres humanos, nada difere uma criança da outra, mas os seres humanos insistem em diferencia-las.

Ao contrário do que eu poderia imaginar, pensar sobre isso não me entristece mais. Lembro que uma vez minha ex-esposa me disse que, antes de chegarmos à esse mundo, nós (nossas almas) escolhem exatamente que tipo de vida querem levar nesse “plano terreno” e isso explica porque uns vivem na miséria e outros são mais abastados. Os miseráveis o são para que possam desenvolver a alma, tornarem-se criaturas melhores. As vezes eu acredito nisso, mas não é isso que me fez superar a tristeza que a desigualdade humana me trazia. É algo muito mais complexo. É diferente quando você vê o sofrimento alheio e se comove com isso e quando você vive um sofrimento de intensidade parecida, de forma consciente.

Ainda tenho certa relutância em admitir isso – mas me parece fato que o sofrimento é o melhor professor. Foi o que vivi no meio desse ano de 2010, em Londres. Esse tem sido um ano muito difícil pra mim. Muitas mudanças, muitas crenças caindo e dando lugar à outras, como se fossem dentes de leite. Mas, sobretudo, esse ano tem sido difícil porque eu insisto em passar por tudo isso de olhos bem abertos, observando cada detalhe.

Acontece que a gente tende a supervalorizar quem e o que somos, mesmo que escondamos isso em nosso íntimo, pois só a gente mesmo pra saber o que passamos nessa vida. O problema é que a gente esquece de olhar pra fora e, mais além, pra dentro das pessoas ao nosso redor. A gente esquece que não somos os únicos a passar por provações nesse mundo. Acho que é a isso que chamam “empatia”, a habilidade de colocar-se no lugar do outro.

Isso é exatamente o que estou fazendo nesse momento, enquanto observo essa família dormindo apertada, chacoalhando no mesmo ritmo do trem que segue resoluto ao seu destino, furando a escuridão da madrugada e contemplando a paisagem que vai mudando e revelando muito mais do que poderiam imaginar os turistas que se limitam a conhecer o centro histórico de Buenos Aires, quando vêm à Argentina.

O casal é jovem, apesar de já possuir duas filhas com essa idade (talvez as garotas sejam gêmeas). O rapaz aparenta ser mais novo que a moça – talvez pelo fato dele trazer um boné na cabeça, hábito que marcou minha adolescência, quando eu não sabia lidar com tantas mudanças na aparência. Ou talvez seja o fato do corpo da moça ter um aspecto maduro, com seios fartos característicos de mulheres que estão amamentando.

Pelas roupas, pelos pertences e pelo fato de viajarem dessa forma eu imagino que são pessoas sem muito recurso financeiro. Talvez nem sejam argentinos – é muito comum pessoas de países como Bolívia ou Peru migrarem para cá em busca de melhores condições de vida e, por incrível que pareça, muitas vezes essa vida pobre que levam na Argentina consegue ser melhor do que a vida que sua terra natal pode lhes oferecer. Como será que eles, os indígenas, estariam hoje se os europeus não tivessem chegado aqui? Concordo, a pergunta é bem clichê. Mas e a resposta?

Talvez a gravidez não tenha sido planejada. Talvez criar essas crianças seja um desafio sem precedentes na vida desses dois jovens. Talvez eles não tenham muita instrução, talvez eles não saibam muito sobre a vida. Talvez nem mesmo seus pais, que os criaram da melhor maneira possível, saibam muita coisa da vida (idade não é, nem nunca será, sinônimo de sabedoria).

Tenho muitos “talvez”, muitas dúvidas, muitas suposições. Mas tenho também uma certeza: eles (o casal, o avô e as crianças) se amam. E é exatamente isso que apazigua meu coração. O amor.

No momento em que aprendi a me colocar no lugar do próximo, aprendi a amá-lo de maneira incondicional. Quem quer que seja, em qualquer situação. Aprendi a perdoar. Aprendi que na verdade todos somos vítimas e que todos os males têm a mesma raiz: a ignorância.

Numa análise mais profunda, sempre chego a essa conclusão – ninguém é vilão, ninguém é mal por querer. Tirando aqueles que fazem o mal por algum tipo de patologia psíquica, eu acredito que todos os outros o fazem por ignorância. Que parâmetros eu tenho para pensar assim? Nenhum outro senão a leitura que faço de mim mesmo. Nunca desejei fazer o mal a ninguém, mas já o fiz algumas vezes – por pura ignorância. Por isso me perdôo e perdôo aqueles que estão ao meu redor. Por isso amo a mim mesmo e amo aqueles que estão ao meu redor. Por isso tornei-me uma pessoa mais tranqüila, feliz.

Ouço a Prima me chamando baixinho, com cuidado, com carinho. Quando finalmente me rendi ao sono e me aninhei no colo dela a gente chegou. Um beijinho no rosto seguido de outro beijinho na boca são suficientes para me despertar por completo. Olho pro outro lado e vejo que o Nego também já acordou. A gente então recolhe nossos pertences e desembarca.

É hora de conhecer Mar del Plata.

Um comentário:

  1. Muito bom o texto! É profundo, mas ao mesmo tempo leve e compreensível.
    Achei incrível como sua escrita possui sensibilidade humana.
    Larissa

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