terça-feira, 30 de novembro de 2010

009

São Paulo, Brasil, 2001.

Eu estava mexendo nas coisas do meu pai, quando ele me pegou no flagra:

- O que você quer aí?

- Tô procurando alguma coisa pra ler...

- Leia o “Capitalismo para Principiantes”, é muito bom.

Nossa casa sempre foi recheada de livros. Desde pequeno minha mãe me estimulou a ler – e por isso lhe sou muito grato. Penso que o hábito da leitura é algo extremamente importante. Quem lê aprende, se informa, se conhece, se comunica. Quem lê viaja parado e nunca volta pro mesmo lugar. Meu pai, por sua vez, foi o responsável pelas melhores leituras da minha adolescência.

- Esse livro fala de quê?

- Ele explica o capitalismo de uma forma bem humorada, leia que você vai gostar.

Na parte de cima da estante da sala ficavam os livros do meu pai. Agora, lembrando um pouco e pensando bastante, aqueles bem que poderiam ser meus livros. Filho de peixe, peixinho é. Certamente papai buscava naquelas leituras o que eu busco nas minhas. Títulos como Deuses, Túmulos e Sábios, ou A História da Riqueza do Homem figuravam em sua biblioteca pessoal.

- Tá, então vou ler esse!

Fiquei entusiasmado. Naquela época eu gostava de ler sobre os “ismos”.

- Depois leia “A Ilha”.

- E de que fala “A Ilha”?

- É um livro-reportagem sobre Cuba.

Esse também me interessou bastante. Cuba. Àquela altura eu já sabia que Cuba era um país socialista, devido a uma revolução liderada por Fidel Castro, da qual Che Guevara também participou.

- Jóia! Vou ler os dois!

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

008

Buenos Aires, Argentina, 07 de novembro de 2010.

- ...Partido de La Matanza.

- Partido de La Matanza?!

- Y sim, Partido de La Matanza!

- Nossa! Que nome estranho para uma cidade...

- Y sim, também acho. Igual, a cidade tem esse nome porque antes havia muitos matadouros lá.

- Matadouros? De gado?

- Sim.

- É, estranho. Imagine eu falando algo pra minha mãe como: “...não mãe, a Prima não mora em Buenos Aires. Ela mora em uma cidade vizinha, tipo Osasco ou Diadema, chamada Partido de La Matanza...”

- Hahahaha! Y sim, o nome é bem estranho...

Estamos a esperando o ônibus - hoje vou conhecer a casa da Prima. Por ser domingo à noite está demorando muito. A “Plaza Constitución” me parece um lugar um tanto perigoso e por isso fico alerta. Alguns garotos de rua estão borboletando em volta dos transeuntes e isso não é bom.

Há, Na Plaza Constitución, um terminal de ônibus metropolitano, uma estação de metrô e uma estação de trem (no estilo europeu, com um amplo saguão de espera e várias plataformas) de onde saem os trens para longas viagens. Foi nessa estação que tomei o trem para Mar Del Plata.

- Igual, lá é um lugar bem pobre hein? Não é como esses lugares que você está acostumado...

- A Prima, deixa disso! Pra mim isso não faz a menor diferença! E depois, eu nunca morei em lugares ricos...

- Y sim, mas agora está bem no centro de Buenos Aires, na parte boa da cidade...

Interrompemos a conversa, pois um senhor idoso começa a correr seguido por um garoto de rua, que traz uma garrafa de cerveja na mão. O garoto alcança o senhor e o ameaça com a garrafa. O senhor resiste ao assalto, se afasta um pouco e o garoto lhe arremessa a garrafa, que o atinge, em cheio, nas costas.

- Ró, não fica olhando...

O senhor pega a garrafa no chão – inteira – e arremessa contra o garoto, que corre e se desvia. A garrafa se espatifa no chão, com um estardalhaço que chama a atenção das pessoas que estão na rua.

O medo é foda. Nos inibe. Paralisa. Nos faz hipócritas. Egoístas. Nada faço para ajudar o senhor assaltado. Fico aqui, acompanhando a cena como se estivesse sentado na frente da televisão, assistindo um filme. Acompanho a cena como se não fosse parte dela.

O sentimento de impotência também é do caralho. Às vezes penso que seria melhor não ver o que vejo. Talvez seja por isso que Deus proibiu o fruto do conhecimento. De que adianta ter consciência de toda essa podridão se não há algo que eu possa fazer? Estou encarando os meninos de rua e tenho tanta compaixão por eles – os agressores – quanto tenho pelo senhor – o agredido. Todos são vítimas.

Imagino como é a cabeça de uma criança dessas, que desde cedo é ensinada a roubar, agredir, talvez até matar, para sobreviver. Elas não estão nessa vida por querer – e quem poderia escolher viver assim, se tivesse escolha? Eu concordo que todas as pessoas têm as mesmas capacidades para vencer na vida. O que faz a diferença é a consciência disso. Os vencedores o são porque, antes de mais nada, têm plena convicção de que são capazes de vencer. Têm fé – senão em Deus, em si próprios. Quem vive na miséria o faz porque acredita que não é capaz de sair dela. Esse detalhe muda tudo.

- Ró, não olha...

A Prima está preocupada, mas eu não consigo deixar de acompanhar os acontecimentos. O senhor entra na estação de trem e volta com um policial, mas os meninos de rua não estão mais por aqui e com eles também se foi a tensão do momento.

- Aqui é bem perigoso essa hora, né? – a Prima puxa assunto com um homem que também espera o ônibus.

- Aqui é perigoso o dia todo – responde o homem.

A Argentina não é muito diferente do Brasil.

Nosso ônibus (finalmente) chega e nós embarcamos. Enquanto seguimos viagem o cenário vai mudando gradativamente. Os edifícios majestosos, as estátuas imponentes dos heróis argentinos e as bandeiras orgulhosamente hasteadas ficam para traz e o país verdadeiro começa a surgir.

A viagem é um tanto longa – algo em torno de uma hora e meia – e nós vamos em pé. A Prima vai me contando um pouco da sua história, misturando o português com o espanhol – ela já está aqui há tanto tempo (e sem muito contato com o português) que isso é inevitável.

Chegamos. Descemos do ônibus num lugar bem diferente do centro de Buenos Aires. As casas são de alvenaria, porém ainda estão inacabadas. Há muito lixo na rua e este disputa espaço com o mato que cresce em toda brecha que encontra no asfalto – e não são poucas. Pouco mesmo é a parte asfaltada, que depois de alguns metros acaba.

Passamos por um “restaurante” de comida típica do Peru e me pergunto “por que diabos há um restaurante nesse lugar? Vão vender pra quem?” e logo me respondo “talvez haja muitos peruanos nesse bairro. Talvez os peruanos aqui sejam como os nordestinos em São Paulo”.

Enquanto caminhamos pelas ruas de terra, tomando cuidado com algumas poças d’água que me parecem eternas, e com um córrego que aparece e some misteriosamente, a Prima comenta:

- É impossível caminhar por aqui quando chove.

- Eu imagino...

De fato, a única diferença entre esse lugar e a periferia de São Paulo é que aqui o terreno é plano, ao passo que em São Paulo há muito morro. A pobreza, porém, é parecidíssima.

- Igual, eu te avisei que isso aqui se parece com aquele filme, Cidade de Deus...

- E qual o problema?

- Y não sei, por aí você não está acostumado com um lugar feio desses...

- Nada que ver – falo, imitando a forma da Prima de falar, pois ela já não pensa mais em português. Ela agora pensa em espanhol e traduz para o português, como fazemos todos ao começar a falar uma língua estrangeira: pensamos em nossa língua materna e traduzimos para a língua em questão, e por isso mesmo algumas vezes não somos compreendidos, pois não podemos traduzir o significado das coisas. Exemplo: um cara de pau, em inglês, não é um “wood face”.

- Em São Paulo também há muitos lugares assim – continuo – e eu tampouco me incomodo com a feiúra pela feiúra. O que me incomoda é que ainda haja lugares assim no mundo, com tanto avanço que conquistamos como seres humanos. Te digo mais: pra mim, conhecer um país não é passear pelo quadro que pintam para os turistas, e sim ver como cuidam de seu povo – e, em alguns casos, de outros povos também.

domingo, 28 de novembro de 2010

007

São Paulo, Brasil, 2000.

Naquela época domingo era um dia sagrado pra mim. Era dia de jogar bola com os meus primos. Eu adoro jogar futebol. Adoro estar em grupo e me encanta ver a capacidade humana de se unir e trabalhar juntos em prol de um mesmo objetivo.

Meu irmão me chamou lá pelas nove da manhã e eu, como sempre, fiz corpo mole pra levantar. Acontece que minha cabeça, como um velho carro a álcool, precisa esquentar por uns instantes para que possa funcionar. Meu irmão tomou seu banho e tornou a me chamar – impaciente. Não tive muita escolha, levantei.

Enquanto eu tomava meu banho ele se arrumava – seu topete brilhante, metodicamente penteado com gel fixador era motivo de chacotas entre os primos, mas ele nunca se importou com isso. Eu não era assim tão vaidoso naquela época, então botei um calção, minha camisa sete do botafogo (a mesma do Túlio Maravilha) e um boné na cabeça. Tomamos um rápido café da manhã e saímos.

Todo domingo nós repetíamos o mesmo trajeto. Andávamos até a casa de nossa avó, onde encontrávamos com o primo Rodrigo e de lá andávamos, os três, até o condomínio onde moravam meus outros primos KK e Júnior.

Eu era o mais novo dos primos, e também o mais novo da turma do futebol. Sempre era o último a ser escolhido e dificilmente alguém me passava a bola. Fazer um gol, então, era o momento máximo do meu dia – quando eu fazia. Eu gostava de dedicar (em segredo, é claro) os meus gols para minhas “paixonites”. “Hoje vou fazer um gol pra Dani, certeza!” – divaguei, um tanto otimista, a caminho do jogo.

O condomínio é, talvez, o mais lindo da região do extremo sul de São Paulo. Suas quatro torres de apartamentos (com vinte e sete andares) são visíveis mesmo do outro lado da represa do Guarapiranga, ou do bairro da Pedreira. Seu nome é Green Village e deve ter mesmo algumas pretensões inglesas, pois tem até um chuveiro daqueles cuja água é pré-aquecida (diferente dos chuveiros elétricos) e a gente tem que mesclar entre água quente e fria para encontrar uma temperatura agradável.

Como sempre fazíamos, nos anunciamos na portaria, onde o porteiro ligava para o apartamento dos primos para solicitar autorização e nos deixar entrar. Entramos. Passamos pelo vasto gramado – impecável como os gramados ingleses – subimos uma escadaria e entramos no prédio onde eles viviam. Pegamos o elevador e subimos ao décimo sexto andar. Tocamos a campainha e dessa vez foi o Júnior que nos atendeu – o KK jogava Elifoot 98 (um jogo de futebol do tipo “manager”, onde somos o técnico da equipe) no computador.

Na TV da sala tava passava um show (em DVD) de uma banda de rock, que me chamou a atenção. Sentei-me no sofá, seguido por meu irmão e meu primo e ficamos ali, assistindo um pouco. A banda tinha uma performance um tanto enérgica e as músicas eram agressivas. No palco, algo me chamou a atenção: havia uma bandeira com aquela foto famosa do Che Guevara, olhando pro nada. Peguei a capa do DVD e memorizei o nome da banda: Rage Agains The Machine. Fiquei interessado – àquela altura já havia pesquisado um pouco sobre a vida do Che e, por conseqüência, tropecei em coisas como Socialismo e Comunismo.

Depois de uma hora, talvez uma hora e meia, a tia nos chamou pra almoçar. Eu adorava aqueles almoços de domingo – não tanto pela mesa sempre muito farta, ou pela comida sempre muito gostosa, mas pela reunião. Ainda que eu fosse um tanto calado e introvertido, adorava ouvir as histórias dos outros.

Volta e meia eu me lembrava da Dani. Eu a tinha conhecido pessoalmente há poucos dias, depois de uma longa amizade por internet. Eu tinha que fazer um gol pra ela! Era questão de vida ou morte! Acontece que eu adorava fazer apostas com o destino, do tipo “se eu faço um gol hoje, ela será minha namorada”.

- E aí Cinderela – meu tio Raimundo mexeu comigo. Segundo a lenda, ele me chamava de Maguila quando eu era pequeno e eu, com meu temperamento explosivo, não gostava. Ele decidiu mudar. “Se você não gosta de Maguila, vou te chamar de Cinderela”.

- Oi tio – respondi um tanto sem jeito.

- E as namoradas?

- Eu não tenho tio...

- Pô, mas já ta na hora hein?

- ... – sem graça e sem resposta, eu abria um sorriso e ficava calado.

- E esse bigode?

- ...

- Ta virando hominho, olha esse bigode hahahaha.

- ...

- Pára de mexer com o garoto Raimundo! – minha tia Mercês me salvou.

Meia hora depois do almoço nós descemos para a quadra, e já tinha gente esperando. Então começou o ritual:

- Quem vai escolher os times? – perguntou alguém.

- Eu não – disse outro.

- Eu acho que quem tem que escolher são o KK e o Júnior, assim eles não caem no mesmo time! – falou o terceiro, opinião que logo foi aceita por todos.

Sem escolha, o KK e Júnior tiraram “par ou ímpar” para logo depois começar a seleção das equipes. Cinco para cada lado. Havia onze pessoas. Eu fiquei de próximo.

O jogo começou, disputadíssimo. O KK e o Júnior tinham a maior rivalidade que eu já vi na vida. Maior que Corinthians e Palmeiras. Maior que Flaflu. Maior que Grenal. Maior que Cruzeiro e Atlético-MG. Maior que Brasil e Argentina. A rivalidade era tanta que, ao jogar vídeo-game, se aquele que vencesse esboçasse um sorriso, dava briga.

“O negócio ta brabo hoje. Os times estão bem equilibrados. Vai ser difícil. Mas é assim mesmo, coisa boa nunca vem fácil! Hoje eu vou fazer um gol, haja o que houver! Minha vida depende disso! – eu pensava, esperando a minha vez.

O tempo foi passando, eu jogava, meu time perdia, eu esperava, depois jogava, meu time perdia, eu esperava e assim foi a tarde toda, até o momento M (assim como hora H). Lá pelo finzinho da tarde futebolística, já estava todo mundo cansado, menos eu que estava sempre de próximo.

Então aconteceu. A bola sobrou livre pra mim. Só eu e o goleiro. O tempo parou. Eu pensei: “é agora!”. Chutei.

No travessão.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

006

Mar de Plata, Argentina, 06 de novembro de 2010.

O porto de Mar del Plata é um local bastante visitado pelos turistas, pois aqui é possível ver e tirar fotos com os Lobos Marinhos. É o que a gente faz. O Nego posa pra foto e toma um susto quando o Lobo Marinho faz um movimento em sua direção. Eu e um grupo de senhoras damos risada do pulo e da cara de espanto do Nego que não vacila e posa novamente ao lado do Lobo Marinho para tirar a foto. Eu também tiro uma foto com o Lobo e a gente continua andando pelo porto apinhado de gente – turistas.

De repente eu paro e fico olhando pro horizonte. Quando o Nego percebe que estou olhando uma embarcação militar, ele fala: “esse é o próximo passo hein?”. O Nego também tem vontade de fazer uma viagem por mar.

A Prima quer comprar escabeche, então a gente segue em direção aos restaurantes. Um homem toca uma tarantela em seu acordeom e não consigo deixar de observá-lo. Adoro acordeom, e adoro tarantela. No restaurante a Prima e o Nego degustam um pouco de escabeche com torrada e a Prima, atenciosa, me dá um pedaço da torrada.

De lá seguimos para a loja onde a Prima compra os cachemires para revendê-los. Feita a compra, decidimos almoçar. Perto da estação de trem nós comemos – os três – duas pizzas grandes, deliciosas – de queijo, claro. De barriga cheia nos dirigimos à estação onde compramos as passagens de volta (pra hoje à noite) e guardamos as malas com cachemires para podermos andar pela cidade.

Nosso primeiro destino é a Catedral Mar del Plata que, segundo a Prima (estudante de Turismo em Buenos Aires), tem muita influência do estilo gótico em sua arquitetura. Cruzamos a praça (linda, arborizada, com caminhos calçados riscando a grama) que antecede a Catedral, onde acontece uma feira de artesanatos.

Entramos na Catedral e, antes de olhar os detalhes de seu interior eu me ajoelho naqueles bancos de madeira forte, maciça, cuja parte traseira é própria para isso, fecho os olhos e começo a rezar:

- Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém.

Deus, muito obrigado. Muito obrigado por este dia maravilhoso, por esta viagem maravilhosa e por essas pessoas maravilhosas que você coloca na minha vida. Muito obrigado por todos aqueles que estão ao meu redor, por todas as pessoas que fizeram, fazem e farão parte da minha vida.

Muito obrigado pela proteção e pela orientação que você me dá todos os dias. Muito obrigado por me trazer até aqui – no começo do ano eu pedi orientação e isso é exatamente o que você tem me dado. Muito obrigado. Por favor, continue me iluminando, para que eu possa encontrar e seguir o meu caminho. Dê-me força para que eu possa cada vez mais aprender e fazer-me, além de forte, sábio e corajoso.

Que eu possa cumprir minha missão na terra. Que eu possa transmitir um pouco dessa felicidade que você me proporciona. Que eu consiga doar-me e que outras pessoas o façam junto comigo, e descubram junto comigo o prazer de fazer o bem.

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Abro meus olhos e vejo a Prima me encarando. Seu rosto tem uma expressão de júbilo. Ela me pergunta:

- Você gosta de rezar?

- Sim – respondo – principalmente em igrejas católicas. Mas isso não quer dizer que eu seja católico. Apenas me sinto bem. Esse ambiente, com essas imagens e essa música de silêncio faz com que eu me sinta mais próximo de Deus, ainda que eu saiba que Ele está dentro de cada um de nós.

- Você não tem cara de quem acredita em Deus...

- Pois eu acredito. Em Deus. Não acredito na religião, em nenhuma das que conheço.

- Por quê?

- A religião é criação do homem e como quase toda (senão todas) criação do homem, repleta de equívocos. O primeiro deles é dizer que a religião A é melhor que a religião B. Veja, das religiões que eu conheço, todas pregam as mesmas coisas – nenhuma diz para fazermos mal aos nossos semelhantes, então por que uma haveria de ser melhor que a outra?

Acontece que o ser humano é um animal de hábitos. Se adquirirmos o hábito de segregar alguma coisa, fatalmente esse hábito se estende as outras áreas de nossa vida. Quando adquirimos o hábito de segregar as pessoas pela religião que elas seguem, acabamos por segregar aqueles que são de etnias diferentes, classes sociais diferentes, opção sexual diferente, cidade, estado ou país diferente e daí por diante. Isso acontece, na maioria das vezes, de forma inconsciente e sem nenhum questionamento.

Outro ponto: não penso que a religião ensine; penso que ela adestra as pessoas. Qual a diferença de dizer pra uma criança “falte à escola e irá direto pro inferno sentar no colo do capeta” e de bater num filhote de cachorro quando ele faz xixi no lugar errado? Nenhuma. Ambos, por instinto e não por clareza, irão deixar de repetir o erro – por puro medo.

Até posso admitir que esse modelo fosse necessário na Idade Média, época em que o desenvolvimento intelectual humano em grande escala era praticamente impossível, mas não hoje. A religião está obsoleta e já faz tempo.

Não nego que as religiões têm alguns aspectos positivos, mas por que se contentar com algo que pode melhorar?

- Eu tive uma criação evangélica – diz a Prima – e nunca tinha visto as coisas dessa forma...

- Mas isso é só um ponto de vista um tanto pessoal – digo dando de ombros.

Olho pra traz e noto que o Nego já não reza mais. Nós três nos levantamos, damos uma volta pelo interior da Catedral e saímos, para continuar caminhando. Como o dia está, agora, mais bonito do que estava de manhã, decidimos voltar à praia para apreciar a vista do mar.

De fato o dia está muito lindo agora. O céu está tão limpo e azul que, no horizonte, parece se fundir com o mar e dá a impressão de que tudo é uma coisa só. O mar está calmo. O sol está quentinho, sem arder. As gaivotas cantam. O cenário está simplesmente perfeito.

A gente senta numa mureta do calçadão da orla da praia. Em algum lugar aqui perto tem alguma coisa – talvez um carro – com o som ligado, tocando salsa. Eu não sei dançar salsa. Assim mesmo eu tiro a Prima pra dançar, e peço: “me ensina?”. Uma sombra de dúvida rapidamente surge (“nunca dancei no meio da rua”, ela diz) e desaparece no rosto da Prima. Ela se levanta e nós começamos a dançar.

Eu passo o braço esquerdo pela cintura da Prima que, por sua vez, passa seu braço direito pelo meu pescoço. As outras mãos se tocam. Nossos quadris se tocam. Nossas coxas se tocam. Chego minha boca bem pertinho do ouvido dela e falo:

- Não me sinto tão feliz assim há muito tempo. Muito obrigado.

005

São Paulo, Brasil.

Mamãe me chamou pra sentar na sua cama. Eu era muito pequeno, mas lembro daquela noite. A luz do quarto estava acesa e a janela aberta, pois fazia calor. Ela olhou bem fundo nos meus olhos e me disse alguma coisa parecida com isso:

- Filho, todos nós estamos aqui por causa de Deus. Deus é a pessoa que cuida de todo mundo. Ele mora no céu. Pra falar com Deus a gente reza. Vou te ensinar a rezar o Pai Nosso ta? Repita o que eu disser: Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome.

- Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome.

- Venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na Terra como no Céu.

- Venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na Terra como no Céu.

- O pão nosso de cada dia nos daí hoje, perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido.

O pão nosso de cada dia nos daí hoje, perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido.

- E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém.

- E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém.

- Muito bem. Todos os dias antes de dormir você deve rezar, e agradecer à Deus. Sempre que você precisar de ajuda ou que tiver medo de alguma coisa, reze. Deus nunca falha com a gente!

Minha mãe é uma mulher cuja fé é inabalável. Filho de peixe, peixinho é.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

004

São Paulo, Brasil, julho de 2000.

Lobisomem fala reservadamente com Princess Leia: oi, quer teclar?

Princess Leia fala reservadamente com Lobisomem: oi! Quero sim!

Lobisomem fala reservadamente com Princess Leia: de onde você tecla?

Princess Leia fala reservadamente com Lobisomem: de São Paulo, capital, e você?

Lobisomem fala reservadamente com Princess Leia: também! Qual bairro?

Princess Leia fala reservadamente com Lobisomem: Vila Madalena, e você?

Lobisomem fala reservadamente com Princess Leia: Interlagos. O que você faz da vida?

Princess Leia fala reservadamente com Lobisomem: eu só estudo, e você?

Lobisomem fala reservadamente com Princess Leia: também...e quando não está na escola?

Princess Leia fala reservadamente com Lobisomem: eu adoro ler e assistir filmes! E você?

Lobisomem fala reservadamente com Princess Leia: também gosto muito de ler, e adoro jogar futebol! Que tipo e música você curte?

Princess Leia fala reservadamente com Lobisomem: a, eu gosto de bastante coisa, quase tudo, e você?

Lobisomem fala reservadamente com Princess Leia: também gosto de bastante coisa! Legião Urbana, Creedence...Creedence eu amo! Conhece?

Princess Leia fala reservadamente com Lobisomem: hum...acho que não...

Lobisomem fala reservadamente com Princess Leia: normal, eu nunca tinha ouvido falar nessa banda até meu primo achar um disco deles perdido nas coisas do meu tio...me fala, você sempre entra em salas de bate-bapo?

Princess Leia fala reservadamente com Lobisomem: não, é minha primeira vez! E você?

Lobisomem fala reservadamente com Princess Leia: também não sou muito de entrar. Que sorte ter entrado hoje!

Princess Leia fala reservadamente com Lobisomem: por quê?

Lobisomem fala reservadamente com Princess Leia: porque achei você! Você parece uma pessoa muito legal!

Princess Leia fala reservadamente com Lobisomem: obrigada. Você também.

Lobisomem fala reservadamente com Princess Leia: você tem ICQ*?

Princess Leia fala reservadamente com Lobisomem: sim! Meu UIN*² é 38130139347.

Lobisomem fala reservadamente com Princess Leia: vou te adicionar!

Princess Leia fala reservadamente com Lobisomem: legal!

Lobisomem: melhor conversar por ICQ né?

Princess Leia: sim!

Lobisomem: o que você quer fazer da vida?

Princess Leia: ainda não tenho muita certeza, mas acho que vou fazer uma faculdade de Design, pra projetar brinquedos!

Lobisomem: nossa! Legal, mas não é muito comum né?

Princess Leia: hahahahaha! É, eu sei, mas eu amo isso! E você?

Lobisomem: eu quero ser político.

Princess Leia: hahahahaha! Quer ser o quê?

Lobisomem: político ué, qual o problema?

Princess Leia: hahahahaha! Nenhum. Depois eu que quero fazer algo fora do comum.

Lobisomem: ta, isso é meio esquisito, mas meu sonho é ser presidente do Brasil!

Princess Leia: e por quê?

Lobisomem: tenho vontade de ajudar as pessoas...

Princess Leia: que legal! Se você acreditar, você chega lá um dia...

Lobisomem: posso te fazer uma pergunta?

Princess Leia: claro!

Lobisomem: tem certeza, é algo meio íntimo...

Princess Leia: faça. E eu respondo se quiser.

Lobisomem: hum. Sei não, melhor eu perguntar depois. Então você gosta de Guerra nas Estrelas?

Princess Leia: siiiiiiiiim!! Demais!! E você?

Lobisomem: também! Meu irmão me levou no cinema pra assistir A Ameaça Fantasma, depois alugou a primeira trilogia pra gente assistir!

Princess Leia: nossa! Que demais! Queria ter um irmão assim! E você, por que Lobisomem?

Lobisomem: ah! É meu apelido aqui no condomínio onde eu moro...

Princess Leia: nossa, que apelido esquisito ahahahaha! Por quê?

Lobisomem: colocaram esse apelido em mim um dia que eu tava jogando bola descalço. Eu estava com as unhas do pé e o cabelo muito grandes...

Princess Leia: hahahahahahaha!

Lobisomem: quantos anos você tem?

Princess Leia: 16, e você?

Lobisomem: ai que vergonha! Não vou responder.

Princess Leia: ah! Pára de besteira! Quantos?

Lobisomem: 14.

Princess Leia: Ah, e daí? Por que a vergonha? Nem parece que você tem 14!

Lobisomem: é nada, você ta sendo gentil!

Princess Leia: é sério!

Lobisomem: posso fazer aquela pergunta agora?

Princess Leia: pode.

Lobisomem: você tem namorado?

Princess Leia: sim.

*nota: ICQ era um mensageiro instantâneo via web, do tipo MSN.

*²nota: UIN era o número de identificação dos usuários do ICQ. Para entrar em contato com alguém via ICQ era necessário saber o seu UIN.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

003

Mar de Plata, Argentina, 06 de novembro de 2010.

A estação é, talvez, tão antiga quanto o próprio trem. As colunas e treliças que sustentam o telhado são de ferro adornado e se parecem muito com o que se pode ver na estação de trem de Bournemouth (cidade litorânea do sul da Inglaterra) e na Estação da Luz (São Paulo, SP – Brasil). Assim como no Brasil, a malha ferroviária Argentina foi construída com envolvimento Inglês.

Ainda não amanheceu, mas no horizonte já é visível uma faixa clara riscando o céu. Sopra um vento muito gelado, o que não me deixa outra opção: eu tiro minha blusa (um cachemir que ganhei do Nego antes de ir pra Londres) e dou para a Prima vestir, pois ela esqueceu de trazer algo para se aquecer.

Andamos alguns poucos metros e uma senhora idosa me pede para ajudar seu marido (idoso também) a descer do vagão. Logo eu e mais dois homens formamos uma pequena equipe e juntos, com algum esforço, auxiliamos o senhor idoso (e um tanto obeso) a descer do vagão. Sua esposa nos agradece, emocionada com a força de vontade do marido em seguir viajando mesmo tão debilitado, e nós seguimos andando. Nesse instante me sinto feliz por ter começado cedo – as pessoas pensam que antes de viver a vida é necessário ter uma carreira, se preparar pra velhice. Que Deus tenha piedade de mim se elas estiverem certas.

Ao sair da estação damos de cara com um Café e eu, de imediato, falo:

- Hey, pelo amor de Deus, vamos tomar um café! Já faz quase uma semana que eu não tomo um café!

- Tudo bem – responde a Prima.

O local também parece muito antigo – a verdade é que sinto-me viajando no tempo. As paredes já foram brancas, mas hoje, devido à sujeira, têm um aspecto acinzentado. Os móveis são de madeira robusta – antigos – e no centro do salão uma lata grande cortada ao meio, repleta de madeira em brasa, serve de aquecedor para o ambiente. Nós nos sentamos, passam alguns minutos um e homem vem nos atender. Eu peço café preto e a Prima “una lágrima”. O Nego não pede nada.

Dou uma olhada no ambiente e vejo que, além de nós três, há apenas uma mulher sentada numa mesa do outro lado do salão, assistindo à televisão que faz fofocas sobre a vida das celebridades.

Passa mais algum tempo (um tanto longo, aliás) e nós somos servidos.

Eu nunca tomei um café tão ruim. Fraco. Sem açúcar. Frio.

A Prima oferece o dela para que eu experimente. “Una lágrima” é uma forma popular de pedir café com leite aqui na Argentina, com pouco café e muito leite. Não é exatamente o que eu chamo de beber café, mas está mais agradável que o meu. Assim mesmo eu tomo minha xícara de café até o fim – deixando bem claro minha decepção.

A Prima pede a conta e vai ao banheiro lavar o rosto. A conta vem rápido. Pago a conta e a Prima chega em seguida. Falo pra ela esperar um pouco, pois eu e o Nego também precisamos lavar o rosto.

Essa viagem à Mar del Plata é idéia da Prima. É aqui que ela compra as mercadorias que vende em sua loja que fica na rua Florida, em Buenos Aires. Como ainda é muito cedo para fazer compras nós decidimos andar pela cidade.

Ainda está muito frio e para piorar começa a garoar. Falo pra Prima que tenho vontade de conhecer a praia e nos dirigimos pra lá. A praia é feia. Tem a areia preta e suja. Mesmo assim eu tiro meu sapato (que me aperta muito os calos) e vou pro mar. O Nego me acompanha. Cinco segundos é o máximo que eu consigo suportar com os pés n’água – ela está muito gelada. O Nego nem se arrisca.

Voltamos pro calçadão onde a Prima está conversando com um homem que, pela aparência, vive nas ruas de Mar del Plata. A Prima tem essa coisa de conversar com todo mundo – talvez seja isso que a protege. O homem nos adverte: andar por ali não é muito seguro aquela hora da manhã, principalmente por estarmos levando um violão, algo que pode chamar a atenção dos ladrões.

Eu lavo meus pés (cheios de areia) numa poça d’água, coloco meu sapato apertado, a Prima se despede do homem de rua e nós continuamos caminhando. Poucos metros à frente um homem numa bicicleta nos aborda vendendo café. A Prima compra, e dessa vez ela pede “trés lágrimas” – nem eu nem o Nego temos vontade de arriscar outro café preto. Enquanto a gente toma nosso café o velho homem nos adverte sobre o perigo de andar por ali aquela hora e nos conta (mostrando a cicatriz) de quando reagiu a um assalto e levou uma facada na mão.

Quando o homem se despede a Prima se levanta e fala: “vamos?” Eu reclamo, falo que não tenho mais condições de andar com aquele sapato apertado. O Nego, nesse momento, tem uma idéia genial. Ele calça meu sapato (um pouco maior que seu pé) e eu calço sua sandália do tipo Papete, deixando os ajustes no máximo para caber no meu pé. Ele salvou meu dia.

Agora que o sol já está visível e que parou de garoar eu não sinto mais tanto frio. Nós estamos caminhando em direção ao porto e essa parte da cidade é muito linda. De um lado o mar, e do outro, jardins cuidadosamente projetados e cuidados, casinhas no estilo europeu onde funcionam restaurantes e hotéis luxuosos – coisa pra inglês (e todo tipo de turista) ver. Jogando conversa fora eu falo pra Prima que sou vegetariano e ela faz a pergunta previsível:

- Por que você é vegetariano?

- Vixi, a história é um tanto longa... – respondo tentando me desviar do assunto.

- Pois nós temos o dia todo pra ouvir, não é Emerson? – a Prima não desiste fácil, e como se isso não bastasse procura reforço.

- Sim. – responde o Nego, dando o apoio que a Prima desejava.

Eu me vejo sem muitas opções e começo a falar.

- Alguns amigos meus se tornaram vegetarianos. Eu sempre tive vontade de virar, mas nunca vi um bom motivo para fazê-lo. E eu sempre preciso de um bom motivo para fazer alguma coisa. Andei lendo sobre o assunto, mas não encontrei o bom motivo nas leituras. Eu poderia dizer que deixei de comer carne porque desejo ter uma alimentação mais saudável, mas isso não seria verdade. Eu poderia dizer que deixei de comer carne porque acredito que a ração gasta com os animais poderia acabar com a fome na África, mas isso não seria verdade. Eu poderia dizer que deixei de comer carne porque me preocupo com os gases bovinos lançados na atmosfera que contribuem para o agravamento do efeito-estufa, mas não seria verdade. Eu poderia dizer que deixei de comer carne porque me preocupo com o desmatamento feito para criar pastos, mas não seria verdade. Eu poderia dizer que deixei de comer carne porque tenho compaixão pelos animais, mas isso não seria verdade (ainda que tenha entendido a importância da compaixão por eles depois de virar vegetariano).

A verdade é que virei vegetariano para fazer uma espécie de auto-treinamento. Mudar a dieta, tirar a carne do cardápio é um desafio considerável, sobretudo resistir à tentação quando as pessoas oferecem carne, ou quando o cheiro maravilhoso de um bife sendo frito ou uma linguiça sendo assada entra pelas narinas sem pedir licença, ou ainda quando bate aquela vontade de comer uma coxinha ou uma pizza de calabresa. Resistir à tentação é a parte que mais me interessa, pois tenho vontade de trabalhar para as pessoas algum dia e, quando esse dia chegar, resistir às tentações será importante.

Paro de falar e a Prima e o Nego ficam um tempo calados. Eu fico sem graça. Não gosto de falar sobre o que penso. Ainda tenho receio, talvez até vergonha. Escolhemos um lugar para nos sentarmos um pouco, em frente ao mar, e descansar. O Nego fica um pouco longe, com o olhar perdido no horizonte. A Prima me beija e se aninha no meu peito. Ela murmura:

- Gosto de ouvir você falar. Você tem muito a dizer.

A gente descansa um pouco para logo depois continuar nossa caminhada.

002

São Paulo, Brasil, 24 de dezembro de 1999.


Aquela foi a melhor festa de natal da minha vida. Aquela noite me marcou pra sempre. A temperatura estava muito agradável. Depois de um tempo no quintal da casa olhando as estrelas no céu limpo, tomando ar fresco e ouvindo Creedence com meus primos Rodrigo e Robertinho, alguém nos convidou para jogar Porco.

Porco é um jogo de baralho onde as pessoas sentam em forma de círculo e recebem, cada uma, quatro cartas (se não me falha a memória). O objetivo é reunir os quatro naipes de uma mesma carta e, para isso, as pessoas entregam – uma de cada vez, no sentido horário – uma carta ao vizinho para, em seguida, receber uma carta do outro vizinho. Quem reúne as quatro cartas primeiro deve abaixá-las e os outros devem parar o que estão fazendo e abaixar as cartas também. O último a abaixar as cartas deve pagar uma prenda, que no caso era beber um copo d’água.

Passaram-se dez anos e a memória já me trai, mas penso que sentaram todos os presentes para jogar, talvez com exceção de minha vó, por estar um tanto velhinha para uma farra dessas. Era a primeira vez que toda a família do meu lado paterno se reunia daquela forma. Todos os tios, tias, primos e primas em harmonia, festejando. A verdade é que isso nunca mais voltou a acontecer. Talvez por isso aquela noite tenha sido tão boa. Mas não foi a festa o que mais marcou em mim naquele dia.

Um de meus vizinhos na mesa de jogo era o tio Raimundo, o mais brincalhão e trapaceiro de todos! O resultado? Eu dei risadas o tempo todo, e não tomei um copo d’água sequer. Acontece que meu tio ficava de olho nas minhas cartas e nas dele, para me passar exatamente as cartas que eu precisava. Tenho certeza que ele fazia o mesmo com seu outro vizinho, pois em alguns momentos eu ficava com seis ou sete cartas nas mãos!

As vezes é legal ser corrupto. Será que as pessoas fazem isso (corrupção) mais pela adrenalina, pelo contentamento de sacanear e não ser pego? Acho que não. Acho que além disso existe mesmo muito egoísmo, o que pra mim também não passa de fruto da ignorância. Claro que naquela época eu ainda não pensava sobre essas coisas – pelo menos não até aquela noite.

Depois do jogo nós comemos a ceia, que estava maravilhosa. Tinha Peru, Tender, Salada de Maionese, farofa, arroz, muito refrigerante, cerveja, sorvete de todos os sabores para a sobremesa, pêssegos em calda com creme de leite...Eu comi muito, fiquei empanturrado. Também tomei muito refrigerante, o que me fez visitar o banheiro a noite toda.

Após a ceia, o diálogo marcante, que deu início à minha busca. Lembro apenas de alguns fragmentos:

- ...o Che lutou para libertar o povo... – disse meu primo Jr.

- ...mas ele matou muita gente... – respondeu meu tio Raimundo.

- ...é, mas esses Yanques matam muito mais... – meu pai entrou na conversa.

- ...pois é... – meu tio Beto apoiou meu pai.

Eles falavam do Che Guevara.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

001

Buenos Aires, Argentina, 05 de novembro de 2010.


Agora que o Nego e a Prima finalmente caíram no sono eu consigo pensar um pouco sobre tudo isso que está acontecendo. Sinto-me feliz. Sinto que finalmente estou fazendo aquilo que sempre quis, ou que sempre precisei – depende do ponto de vista. A verdade é que selei meu destino antes mesmo de entender a magnitude do que reservei pra mim mesmo.

O cenário não poderia ser mais comovente: na terceira classe do trem, antigo, os assentos – apesar de estofados em couro – são um tanto desconfortáveis para uma viajem de 6 ou 7 horas, como essa de Buenos Aires à Mar Del Plata, esta última uma cidade litorânea banhada pelo Atlântico Sul. O teto, revestido de madeira como todo o interior do vagão, exibe alguns lustres antigos, assim como alguns ventiladores antigos também – talvez não tão antigos como a própria ferrovia argentina cuja construção teve início em meados de 1855 (e que já foi uma das mais extensas do mundo, e permanece como a maior da América do Sul) mas que ainda assim sustenta uma idade respeitável. A fraca iluminação dá um toque ainda mais nostálgico ao cenário.

Nosso assento tem capacidade para três pessoas e nós nos acomodamos de forma que o Nego sentou-se na janela, eu sentei-me no meio e a Prima ao meu lado direito, no corredor. No assento da frente (de mesma capacidade que o nosso) viaja uma família com nada menos que cinco pessoas, composta por (talvez) o avô, o pai, a mãe e duas garotinhas com quatro anos, no máximo. Não sei como cabem os cinco nesse banco, junto com as bolsas de fraldas e mamadeiras, mas é fato que eles todos dormem profundamente – com exceção da mãe, que se mantém alerta para acudir as filhas no que se faça necessário. Elas, as garotas, dormem no colo – uma do pai e outra da mãe – de forma que apresentam uma elasticidade invejável e, mesmo com todo esse desconforto, seus rostinhos imprimem a alegria e a inocência que só as crianças podem experimentar.

Observando essas mocinhas de traços indígenas (pele parda, olhinhos puxados e cabelos negros escorridos, cortados com franjinhas) meu pensamento vai longe, não consigo deixar de pensar no meu sobrinho, nascido há pouco mais de um mês em Londres e que ainda não tive a chance de conhecer – um menino lindo, saudável e muito fofinho, como denunciam suas fotos. Também não posso deixar de traçar um paralelo entra as vidas dessas três crianças e pensar nas oportunidades que cada uma delas terá no decorrer da vida. Como seres humanos, nada difere uma criança da outra, mas os seres humanos insistem em diferencia-las.

Ao contrário do que eu poderia imaginar, pensar sobre isso não me entristece mais. Lembro que uma vez minha ex-esposa me disse que, antes de chegarmos à esse mundo, nós (nossas almas) escolhem exatamente que tipo de vida querem levar nesse “plano terreno” e isso explica porque uns vivem na miséria e outros são mais abastados. Os miseráveis o são para que possam desenvolver a alma, tornarem-se criaturas melhores. As vezes eu acredito nisso, mas não é isso que me fez superar a tristeza que a desigualdade humana me trazia. É algo muito mais complexo. É diferente quando você vê o sofrimento alheio e se comove com isso e quando você vive um sofrimento de intensidade parecida, de forma consciente.

Ainda tenho certa relutância em admitir isso – mas me parece fato que o sofrimento é o melhor professor. Foi o que vivi no meio desse ano de 2010, em Londres. Esse tem sido um ano muito difícil pra mim. Muitas mudanças, muitas crenças caindo e dando lugar à outras, como se fossem dentes de leite. Mas, sobretudo, esse ano tem sido difícil porque eu insisto em passar por tudo isso de olhos bem abertos, observando cada detalhe.

Acontece que a gente tende a supervalorizar quem e o que somos, mesmo que escondamos isso em nosso íntimo, pois só a gente mesmo pra saber o que passamos nessa vida. O problema é que a gente esquece de olhar pra fora e, mais além, pra dentro das pessoas ao nosso redor. A gente esquece que não somos os únicos a passar por provações nesse mundo. Acho que é a isso que chamam “empatia”, a habilidade de colocar-se no lugar do outro.

Isso é exatamente o que estou fazendo nesse momento, enquanto observo essa família dormindo apertada, chacoalhando no mesmo ritmo do trem que segue resoluto ao seu destino, furando a escuridão da madrugada e contemplando a paisagem que vai mudando e revelando muito mais do que poderiam imaginar os turistas que se limitam a conhecer o centro histórico de Buenos Aires, quando vêm à Argentina.

O casal é jovem, apesar de já possuir duas filhas com essa idade (talvez as garotas sejam gêmeas). O rapaz aparenta ser mais novo que a moça – talvez pelo fato dele trazer um boné na cabeça, hábito que marcou minha adolescência, quando eu não sabia lidar com tantas mudanças na aparência. Ou talvez seja o fato do corpo da moça ter um aspecto maduro, com seios fartos característicos de mulheres que estão amamentando.

Pelas roupas, pelos pertences e pelo fato de viajarem dessa forma eu imagino que são pessoas sem muito recurso financeiro. Talvez nem sejam argentinos – é muito comum pessoas de países como Bolívia ou Peru migrarem para cá em busca de melhores condições de vida e, por incrível que pareça, muitas vezes essa vida pobre que levam na Argentina consegue ser melhor do que a vida que sua terra natal pode lhes oferecer. Como será que eles, os indígenas, estariam hoje se os europeus não tivessem chegado aqui? Concordo, a pergunta é bem clichê. Mas e a resposta?

Talvez a gravidez não tenha sido planejada. Talvez criar essas crianças seja um desafio sem precedentes na vida desses dois jovens. Talvez eles não tenham muita instrução, talvez eles não saibam muito sobre a vida. Talvez nem mesmo seus pais, que os criaram da melhor maneira possível, saibam muita coisa da vida (idade não é, nem nunca será, sinônimo de sabedoria).

Tenho muitos “talvez”, muitas dúvidas, muitas suposições. Mas tenho também uma certeza: eles (o casal, o avô e as crianças) se amam. E é exatamente isso que apazigua meu coração. O amor.

No momento em que aprendi a me colocar no lugar do próximo, aprendi a amá-lo de maneira incondicional. Quem quer que seja, em qualquer situação. Aprendi a perdoar. Aprendi que na verdade todos somos vítimas e que todos os males têm a mesma raiz: a ignorância.

Numa análise mais profunda, sempre chego a essa conclusão – ninguém é vilão, ninguém é mal por querer. Tirando aqueles que fazem o mal por algum tipo de patologia psíquica, eu acredito que todos os outros o fazem por ignorância. Que parâmetros eu tenho para pensar assim? Nenhum outro senão a leitura que faço de mim mesmo. Nunca desejei fazer o mal a ninguém, mas já o fiz algumas vezes – por pura ignorância. Por isso me perdôo e perdôo aqueles que estão ao meu redor. Por isso amo a mim mesmo e amo aqueles que estão ao meu redor. Por isso tornei-me uma pessoa mais tranqüila, feliz.

Ouço a Prima me chamando baixinho, com cuidado, com carinho. Quando finalmente me rendi ao sono e me aninhei no colo dela a gente chegou. Um beijinho no rosto seguido de outro beijinho na boca são suficientes para me despertar por completo. Olho pro outro lado e vejo que o Nego também já acordou. A gente então recolhe nossos pertences e desembarca.

É hora de conhecer Mar del Plata.