quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

023

San Miguel (Grande Buenos Aires), Argentina, 07/08 de dezembro de 2010

O bolo já está na mesa (farta também em bebidas como refrigerantes de todas as cores e cerveja, muita cerveja) e o pessoal começa a se reunir pra cantar o parabéns pra você. O Leo me disse quantos anos Don Juan está completando, mas eu não me recordo – alguma coisa na casa dos cinquenta.

Com todos por perto, alguém puxa o canto (a mesma melodia, com palavras completamente diferentes – e não por ser outro idioma, mas sim pelo fato de que uma tradução literal não teria o mesmo significado):

- Feliz cumpleaños...

Por não conhecer a letra, eu sigo mexendo os lábios, sem produzir som, como fazem os jogadores de futebol no momento em que inicia a segunda parte do hino nacional brasileiro, para enganar quem vê mas não pode ouvir.

Antes de cortar o bolo, Don Juan faz um discurso e, para meu desespero, depois dele cada uma das pessoas seguem fazendo o mesmo. “Pronto, era só o que me faltava! Vou ter que discursar pra esse povo também” – penso. Eu não gosto de fazer discurso – não pelo fato de falar em público (eu não tenho problemas com isso, e geralmente me saio bem) e sim por não gostar de falar o que penso, me abrir em demasiado.

- Anda Rávsan – Don Juan ainda não consegue pronunciar meu nome direito. Ás vezes ele fala como o Sílvio Santos: “Lommmmbardi-ammmm” – fale em português, não há problema!

Não tem escapatória. Com esse incentivo de Don Juan, todos ficam quietos me olhando, esperando minhas palavras, e esse silêncio pré-discurso começa a me sufocar. Sem mais tempo pra pensar, eu começo:

- Bom, é claro que eu vou tentar falar em castellano, para que vocês possam entender um pouco do que eu estou falando...

Minhas mãos tremem, mas minha voz segue firme.

- ...eu gostaria de agradecer o convite a participar de uma festa tão linda como essa. A oportunidade de estar com você agora é como um presente de Deus a mim e, na verdade, foi por isso que eu saí do Brasil há pouco mais de um mÊs: para conhecer meus irmãos da América do Sul...

Minhas mãos tremem, o suor surge em minha testa, mas minha voz segue firme.

- ...neste momento, eu sinto muita saudade da minha família que está longe...

Minhas mãos tremem, o suor escorre um pouco, meus olhos ficam marejados, mas minha voz segue firme.

- ...mas entre vocês eu posso me sentir em família e isso me faz bem e feliz. Por isso eu lhes agradeço! Muchas gracias!

Passa um breve momento de silêncio (e eu me pergunto se puderam entender o que eu quis dizer) e as pessoas batem palmas – como fizeram depois de cada discurso. Um sorriso brota em meu rosto. “Ufa! Acabou! Agora é o Preto que tá fudido!” – pensei, aliviado por mim e “preocupado” com o Nego.

Ele, o Nego, também discursa tentando falar em castellano. Isso me surpreende pois pensei que ele não teria coragem de discursar, mas ele também tem muita força de vontade para superar os próprios medos e dificuldades.

Quando a gente sai do país e precisa se virar de qualquer jeito, porque ninguém mais vai fazer isso pela gente, a gente se descobre. A descoberta é o primeiro passo. O segundo é o mais difícil – se aceitar. Penso que a auto-aceitação (e por conseqüência o auto-perdão) é o divisor de águas na vida das pessoas. É uma pena que muita gente viva uma vida sem passar por isso – se descobrir, se aceitar, tentar melhorar e crescer.

O Nego termina seu discurso – ele se saiu muito bem – e também recebe aplausos. O Leo também discursa – para fechar a rodada de discursos – e Dona Soledad começa a cortar e distribuir o bolo.

***

Já é madrugada – talvez quatro da manhã. Os convidados já foram embora há algum tempo, e as pessoas que moram na casa já estão dormindo. Na sala, eu, o Nego e o Leo estamos conversando com Don Juan, que ainda tem numa das mãos um copo (sempre) cheio de Quilmes (a famosa cerveja argentina).

Estamos falando sobre temas como revolução, mudar o mundo, criar um lugar onde todos possam viver bem e felizes. Estamos falando de utopias, mas como cantava Lennon em sua (maravilhosa) fase pós-Beatles (obrigado Yoko), nós também acreditamos que um dia todos, unidos, faremos da utopia realidade. Eu falo:

- Eu já li algumas coisas sobre o Che, Fidel, Lênin, Stálin e Mão-Tse. Eu não acredito que uma revolução possa ser feita com armas, guerras e sangue – não uma revolução verdadeira e duradoura. A revolução deve ser feita dentro de cada ser humano e não na maneira como governamos.

Acredito que a verdadeira revolução deve ser feita dentro de cada casa, pelas pessoas comuns. Nós devemos aprender o valor da doação, mas não falo de uma doação financeira. Falo de uma doação mais profunda. Falo sobre doar-nos às pessoas próximas a gente dando-lhes tempo e atenção, fazendo coisas simples como cozinhar, lavar os pratos, manter as coisas ordenadas e mesmo conversando e escutando o que elas têm a dizer.

Esses são hábitos que se desenvolve e se estende a tudo. Quando una pessoa aprende o valor da doação, acaba por doar-se a todos ao seu redor, como familiares amigos, companheiros de trabalho e mesmo a desconhecidos...

Quando aprendemos a nos doar, podemos provar o doce gosto de amar a todos, amigos e inimigos, como dizia Jesus Cristo. Podemos provar o doce gosto do amor verdadeiro.

- Aí está – diz Don Juan – agora você chegou ao ponto: o amor! Somente o amor é capaz de mudar o mundo! Mas é preciso simplificar o amor. Muito se fala sobre as diferentes maneiras de amar: uma pessoa pode amar a seu pai e sua mãe de uma maneira, pode amar a seu amigo de outra maneira, pode amar a sua namorada ou esposa de outra maneira...Isso tudo é demasiado complicado. O amor é um, somente um.

Temos que amar a todos da mesma forma. Não há por que confundir o amor com a paixão, por exemplo, e por isso mesmo o amor pode ficar quando a paixão vai embora...

Quando todos amarem como Jesus Cristo nos amou, teremos nossa verdadeira revolução.

Um comentário:

  1. Cara, eu morro de preguiça de ler em castellano ._.

    Fora isso, adoro o blog. O que eu acho mais legal é seu jeito de contar as coisas fora de ordem, de forma que o passado vai explicando o presente, sabe?

    Gabriela Luna

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