quarta-feira, 16 de março de 2011

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Montevidéu, Uruguai, 16 de janeiro de 2011

Eu saio da pensão e fico esperando a Anni sentado no degrau da porta. Nós combinamos passear pela orla da praia e, depois, procurar um lugar onde possamos sentar e tomar mate juntos. O dia, porém, não parece muito propício a isso: está nublado. Ao meu lado, o encarregado e o porteiro do turno da noite conversam qualquer coisa enquanto fumam.

Avisto a Anni no horizonte e, mesmo sem a certeza de ser ela mesma que se aproxima, me levanto e vou em sua direção.

- Oi! Como você está? Eu estava com saudades... – falo.

- Eu também! Estou bem, e você?

- Bem... Deixa eu levar essa bolsa pra você!

- A, não precisa! Está pesada...

- Sim, é o que parece, e por isso mesmo eu devo levá-la!

Com alguma relutância, a Anni me entrega a bolsa onde estão os aparatos para tomar mate: a garrafa térmica, a “bombilla” (o canudo) e a cumbucazinha – além da erva, é claro.

De mãos dadas caminhamos até a orla da praia, onde rapidamente nos sentamos de frente para o rio (ou mar, ainda não posso definir o que é o que, nesse ponto onde água doce e salgada se fundem imaginando ser o amor entre opostos algo possível – ou talvez sem pensar nessas besteiras, querendo apenas estar uma com a outra).

- Nossa, eu adoro essa vista, sabe? Essa vastidão de água que preenche todo o horizonte me dá uma calma, mas ao mesmo tempo uma ansiedade de lançar-me por aí...

- Eu também! É por isso que eu sou feliz aqui em Montevidéu. Eu sempre olhava pro mar, em Husum (cidadezinha ao norte da Alemanha), e sentia muita falta disso em Mendoza (cidade argentina que fica próxima aos Andes). É como se as montanhas me prendessem, sei lá...

Ouvindo a Anni, tenho a impressão que ela é uma alma errante, que anseia pela liberdade acima de tudo. Nunca a prisão da carne me pareceu tão difícil para uma pessoa como me parece pra ela. Por isso mesmo, não descarto a possibilidade de inventar nela a pessoa que sou – dificilmente a gente não age assim, estamos sempre moldando no outro o que somos.

- Me fala, como é Valizas?

- É uma cidade muito pequena, quase um povoado...

- Sério? O camping onde você ficou era muito longe da praia?

- Não, umas quatro quadras! Lá é muito pequeno, nada fica longe da praia...

- Entendo... E como é? Tem montanhas ao redor? Tem que descer uma serra para chegar no litoral?

- Não... É tudo muito plano. Sabe como é o caminho de Colonia del Sacramento até aqui? É igual...

- Hum...

Apesar de ter feito esse caminho umas três vezes, eu não sei dizer como ele é, exatamente, pois dormi na maior parte do tempo. Da parte que me lembro – aquele na qual andei um pouco de carona e caminhei uma eternidade na beira da estrada, dias antes, com o Nego e o Leo – eu posso dizer que, de fato, o caminho é plano.

- E como foi lá? O que você fez?

- Nada demais... Não há muito o que fazer da vida lá, além de entrar no mar e pensar na vida...

Silêncio.

Venta muito. Tanto que meus cabelos parecem querer me abandonar e seguir seu próprio rumo – e os da Anni também, ainda que de uma forma mais comportada. Seus olhos me parecem menos brilhantes hoje, talvez por estar o dia nublado, ou talvez o dia esteja nublado pela falta de brilho nos olhos dela.

Ela puxa o ar, como que tenta dizer alguma coisa, e desiste de falar – não pela primeira vez. Eu já sei o que está por vir, então decido ajuda-la a entrar no assunto, algo que lhe parece quase impossível:

- Você conseguiu pensar sobre aquilo?

- Sim. Eu me sentei numa pedra bem alta e fiquei ali, o dia todo, olhando para o mar e pensando...

- E conseguiu tomar alguma decisão?

- Sim....

- E? Qual foi?

Diferente do que eu poderia imaginar, não estou ansioso. Eu gosto da Anni, e não seria exagero dizer que, em outra época – tanto pra mim, como pra ela – isso poderia se tornar uma paixão, daquelas avassaladoras que a gente sempre espera viver, ainda que negue isso na maior parte do tempo.

Não estou ansioso, porque isso não é meu. Esse momento não é meu. É dela. Sei disso, e por isso me dôo, me ponho como não mais que uma mão a ajuda-la a seguir seu caminho, como quem ajuda alguém a atravessar a rua.

- Eu quero tentar de novo com ele. Quero reatar com meu ex-namorado.

A tristeza me visita nesse instante. Mesmo sabendo que tudo tem seu tempo, que tudo tem uma razão, eu me sinto triste. Rejeitado. Meu coração bate mais acelerado, o peito dói, a boca seca. Meu olhar não encontra o dela, foge – não o da carne, que segue estático olhando aqueles olhos azuis sem brilho, mas o da alma, que procura abrigo. Me pergunto se ela pode notar isso.

Esse instante, porém, é muito mais breve que um piscar de olhos. Eu mudo rapidamente o foco do meu sentimento (e aqui fico feliz de notar o resultado de tanto treinamento), afinal, não é meu momento, é o dela.

- Fico feliz por você, Anni. Não nego que fico triste por mim, mas fico muito mais feliz por você! Essa é uma decisão difícil, e você conseguiu toma-la...

- Desculpa...

- Você não deve me pedir desculpas! De verdade, fico contente que você ainda acredite no amor que sente por ele, e esteja disposta a tentar novamente!

Talvez seja impressão minha, mas eu quero acreditar que o brilho está voltando pr’aqueles olhos azuis novamente.

- Sabe, eu gostaria que ele pudesse ser um pouco como você...

- E certamente gostaria que eu pudesse ser um pouco como ele!

- Hum... Não sei em quê você poderia ser como ele...

- Mas certamente há muitas coisas – coisas essas que te fazem amá-lo!

A chuva que se anunciava começa a cair, tão forte e intensa como a importância daquele momento em nossas vidas.

- Nossa, essa chuva é igualzinha à chuva que cai no verão, em minha cidade natal! – digo. Faz muito tempo que eu não tomo um banho de chuva assim!

Nos levantamos e voltamos pra casa caminhando – não adiantaria correr, já estamos ensopados. Seguimos conversando sobre qualquer trivialidade a respeito de chuva e infância, até que chega o momento da despedida.

Eu tomo seu rosto molhado em minhas mãos. Olho dentro de seus olhos e digo, calado, tudo aquilo que as palavras não conseguem. Puxo seu corpo para junto do meu, e lhe dou o último beijo. Assim, sem adeus, vou embora sem olhar pra trás.

2 comentários:

  1. Pow primo quando eu seje grande quero ser como vc!!! y na outra encarnacao tambem. beijos.

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  2. Incrível sua capacidade de enxergar a individualidade do outro. Sensibilidade que encanta!
    Laris

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