segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

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Algum ponto entre Colonia e Montevidéu, Uruguai, 02 de janeiro de 2011

Falta muito pouco para anoitecer – o sol já se pôs. Estamos cogitando armar as barracas de acampamento na beira da estrada para passar a noite, porque ainda não chegamos a nenhum posto de gasolina, e tampouco conseguimos outra carona.

- Aquilo é uma casa abandonada? – pergunta o Nego.

- Sim! Que lhes parece, passamos a noite aí? – pergunta o Leo.

- Mmmmm...fiquem aqui com as coisas que eu vou lá dar uma olhada. – falo.

Não, eu não sou corajoso. Nem estúpido. Certo, talvez um pouco estúpido. A verdade é que eu estou morrendo de medo mas assim mesmo entro na casa. O lugar é pequeno, tem uma sala, um quarto, uma cozinha e um banheiro – todos vazios. Em nenhum dos cômodos há teto, e o chão está coberto de escombros em todo lado. Parece que este local está abandonado há muito tempo.

- Che, aí a gente não pode ficar – falo, ao regressar – porque não há teto, e nem espaço no chão para armar a barraca. Tá tudo cheio de pedregulhos.

- Mmmm, que droga! – fala o Leo.

- Ali tem outra casa, ó – fala o Nego, apontando para uma pequena construção há alguns metros da gente – deixa que eu vou dar uma olhada nela.

Eu não quero deixar, mas o Nego foi tão enfático que não me resta outra escolha. Fico surpreso ao notar que ele, muito mais esperto que eu, pega um pedaço de pau antes de inspecionar a casinha.

- Essa eu acho que dá pra gente ficar – ele fala quando volta – tem teto no quarto, e da pra armar a barraca no chão tranqüilo.

Pegamos nossas cruzes, digo, nossa bagagem, e vamos os três para a casinha. De fato, aqui se pode passar uma noite. Com exceção do pequeno quarto – mede 3 x 3 metros, acho – todos os outros cômodos do lugar estão com o chão repletos de escombros – provavelmente o que sobrou do teto.

- Che, esse quartinho ta bom! Ele tem duas saídas, a janela e a porta. Se alguma coisa acontecer, a gente tem pra onde correr! – fala o Leo.

- É verdade!

- Vou dar uma olhada ao redor da casa pra ver qualéqueé – diz o Nego.

- Eu também – fala o Leo.

Eu fico ali no quartinho arrumando nossas coisas, dando uma limpada no chão cheio de poeira e galhos secos. “Que sorte termos encontrado essa esteira de bambu na beira da estrada, está novinha! Pelo menos não vamos deitar direto no chão. Certeza que Deus nos está cuidando nesse momento. Fica mais fácil acreditar Nele quando a gente aceita que mesmo os sofrimentos são presentes Dele para o nosso crescimento...” penso.

- Ei, tem uma casinha aqui do lado que parece ocupada. Acho que tem alguém vivendo lá – fala o Nego ao voltar.

- Deixa o Leo chegar que a gente pede pra ele ir lá com você. Eu não posso, com esse chinelo. – respondo. Ainda não tinha me dado conta que andei o dia todo com meu par surrado de havaianas.

O Leo volta e lá se vão os dois inspecionar a casa do nosso “vizinho”.

“Minha nossa, olha esse pôr do sol!” penso. O quadro moldado pelas guarnições resistentes da janela antiga é realmente surpreendente: No horizonte, as formas distintas das muitas árvores não são mais que sombras envoltas por uma luz alaranjada que sobe ao céu em degradé, passando por toda a gama de amarelo e vermelho até se transformar num azul clarinho, que por sua vez ascende ao ponto mais alto alcançando um negrume completo.

"Muito obrigado" é tudo o que eu posso dizer, ao contemplar essa paisagem.

- Olha, realmente ta bem arrumadinha a casinha do “vizinho”, mas tem bastante poeira em tudo, acho que ele não aparece faz tempo. – fala o Leo.

- Por aqui também, ó: tem uma fogueira apagada, uma caixa de vinho – no Uruguai, como na Argentina, os vinhos mais baratos são vendidos em caixinhas do tipo “Tetrapack” – e até uma garrafa de cerveja quebrada. – digo.

- Bueno, eu acho que a gente pode passar a noite aqui. A gente faz um rodízio onde dois durmam e o terceiro fique acordado, de vigília. - diz o Leo.

- Concordo! – falo.

- Vamos fazer uma fogueira – diz o Nego.

Ao dizer essas palavras, o Nego sai a caça de galhos secos para a fogueira e eu vou no seu encalço. A noite já tomou conta do lugar, e tudo que posso ver do Nego são seus olhinhos se mexendo e seu sorriso de alegria, como uma criança que está aprontando alguma travessura MUITO proibida. Eu também me sinto assim. Impossível não lembrar da minha infância, quando a gente entrava em casas abandonadas para montar “clubinhos” – um tipo de “sociedade secreta para criança”.

Voltamos com os galhos e o Leo faz a pergunta premiada:

- Vocês têm algo para acender o fogo?

...

...

...

- Hahahahaha! Não! Hahahahahaha! – respondemos o Nego e eu.

O Leo, então, vai para a estrada procurar alguém que nos possa dar fogo. Contra todas as probabilidades ele volta algum tempo depois, com um isqueiro.

- Tem uma parada de ônibus aqui perto, e eu consegui esse isqueiro com um motorista cujo ônibus estava esperando mais alguns passageiros para seguir viagem! – fala empolgado.

Não dá pra duvidar da existência de Deus nessas horas, mesmo que Deus seja conhecido como “Sorte” por algumas pessoas.

Com alguma dificuldade, acendemos uma fogueira no que seria a sala da casinha. Como venta muito, a fogueira pega fogo intensamente, com chamas altas, e por isso mesmo nossos galhos vão acabando muito rapidamente.

Eu acho que em muitos poucos casos, em toda a história do mundo, a estupidez humana salvou um punhado de indivíduos de perigos como insetos e/ou animais venenosos, ou até animais perigosos. Às vezes a burrice, digo, ignorância, é um dom precioso.

Para fugirmos do vento que consumia nossa fogueira, resolvemos levar a fogueira pra dentro do nosso quarto. A nuvem de fumaça que dominou o pequeno cômodo era tão densa que não se poderia enxergar um palmo à frente do próprio nariz, se fosse possível abrir os olhos que lacrimejavam como se eu estivesse cortando uma cebola.

Rindo histericamente, apagamos a fogueira e saímos do quartinho, completamente defumados. Nós e todos os outros seres vivos do lugar – certeza que nada (nem mosquito, nem escorpião, nem cobra) ia nos incomodar aquela noite.

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