sexta-feira, 1 de abril de 2011

058

São Paulo, Brasil, segundo semestre de 2008.

Saí do banho só de toalha e fui para o quarto. Quando vi a Ná deitada, toda empacotada entre lençóis e edredons, um pensamento muito sacana me veio na cabeça. Tirei a toalha e fiquei completamente nu. Com uma cara muito sapeca – que ela conhecia muito bem, e sabia o que viria a seguir – eu comecei a correr pela casa, saí pela porta da cozinha e fui pelado pelo quintal, com uma passada curta e desengonçada imitando o caminhar de um bebê que apenas descobre os primeiros passos. Ela veio em meu encalço, me agarrou e me levou de volta pra dentro puxando minha orelha. Eu amava essa mulher.

No quarto, depois de muitas risadas da brincadeira, e depois de muito carinho pelo mesmo motivo, me vesti para ir jogar futebol.

- Quantos gols você quer? – perguntei, já no portão de casa.

- Hum... Cinco! – respondeu a Ná, com um sorriso algo entre serelepe e complacente, talvez imaginando que marcar mais fosse impossível pra mim.

- Só cinco? Tá bom...

Dei-lhe um beijo e fui andando até a quadra, que ficava a mais ou menos quinze ou vinte minutos de caminhada de casa. De noite, com aquela brisa agradável, o trajeto era facilmente percorrido. Fui pensando pelo caminho, muito entusiasmado, na partida de futebol. Eu amo futebol.

Na quadra, cumprimentei o pessoal que, como eu, sempre chegava uns 10 minutos antes – talvez por não poder conter a excitação e ficar parado em casa, assistindo a novela das oito enquanto esperava a hora “certa” de sair. Logo procurei o Ivan – responsável pelo aluguel da quadra – e lhe paguei minha parcela da mensalidade.

Como já estava com roupa de jogo, sequer precisei trocar o tênis. Assim que começou o nosso horário eu entrei na quadra e comecei a chutar bola para o goleiro, alongar as pernas e dar uma corridinha pra me aquecer – hábitos que ainda mantenho, desde a época em que treinava no time da Eletropaulo.

- Toma um colete verde – falou o Ivan, que também era responsável por dividir as equipes.

Como a maioria dos “jogadores”, o Ivan era um senhor de meia-idade, acho que tinha algo entre 45 e 55. Ainda assim, parecia muito bem preparado fisicamente – acho que era professor de academia, ou professor de educação física, algo assim.

O jogo começou duríssimo como sempre. Os times não estavam lá muito equilibrados (o Ivan sempre montava uma equipe forte pra ele próprio), mas assim mesmo eu corria e me divertia como uma criança. Vencia os longos metros de uma trave à outra do campo de grama sintética tipo “society” sem pestanejar muito.

“Como é bom poder correr o jogo todo, participar, ter fôlego até o final. Foi um regime muito duro, admito, mas depois de baixar dos 97 aos 85, cheguei à conclusão de que, seu eu pude, qualquer um pode – basta querer. Aliás, acho que o único impedimento é justamente esse, o querer. As pessoas levam uma vida infeliz, com baixa auto-estima também causada pelo excesso de peso e (talvez) nem se dão conta disso. Na verdade, o sobrepeso é conseqüência, e não causa da baixa auto-estima, mas ainda sim vale a pena trabalhar nas folhas até descobrir a raiz do problema.” – pensei, enquanto esperava minha vez de entrar em quadra novamente.

- Toca a bola! – gritou o Wilson, também conhecido como “Nilson, o pasteleiro”.

Não toquei, dei mais um drible.

- Aqui, eu tô sozinho! – ele falou de novo.

Não toquei. Mais um drible.

- Toca, Shytarinha! – essa é a maneira como me chamam os que conhecem meu pai, cujo apelido é Shytara.

Não toquei, chutei para o gol.

- Boa Shytarinha, é isso aí!

“Queria ver se o elogio viria, se a bola não tivesse entrado... Ainda me faltam três gols pra cumprir a promessa. Acho que hoje vai dar!” – pensei.

Foi quando notei o Ivan caído ao lado da quadra, sofrendo de algo como um ataque epilético. Completamente sem saber o que fazer, eu comentei com um dos rapazes que estavam de fora:

- Ei, o Ivan tá passando mal...

A sucessão dos fatos, a partir daí, foram meio confusos. Todos se juntaram ao redor do corpo caído inerte, até que os mais experimentados começaram os primeiros-socorros. Botaram os dedos dentro da boca dele para que a língua não enrolasse. Logo depois, ao notarem que ele não respirava, fizeram uma respiração boca-a-boca. Sem resultados, veio a massagem cardíaca. Nada. Alguns tentavam, em vão, chamar uma ambulância que, por algum motivo desconhecido, nunca chegou na quadra. Com algumas mesas de bar, dessas de plástico, improvisaram uma maca onde colocaram o Ivan e o levaram para a pick-up de um dos rapazes, ao mesmo tempo que gritavam e o incentivavam a resistir. Quando passaram por mim, porém, eu vi que aqueles olhos já estavam sem vida.

Voltei pra casa caminhando, sozinho.

Aquela foi a experiência mais próxima e mais real que tive com a morte, até então.

Aquilo não me perturbou como era de se esperar.

Talvez por não ser alguém próximo a mim.

Duvido.

A morte faz parte da vida.

A vida precisa da morte.

Rezei.

Nenhum comentário:

Postar um comentário