sexta-feira, 26 de novembro de 2010

006

Mar de Plata, Argentina, 06 de novembro de 2010.

O porto de Mar del Plata é um local bastante visitado pelos turistas, pois aqui é possível ver e tirar fotos com os Lobos Marinhos. É o que a gente faz. O Nego posa pra foto e toma um susto quando o Lobo Marinho faz um movimento em sua direção. Eu e um grupo de senhoras damos risada do pulo e da cara de espanto do Nego que não vacila e posa novamente ao lado do Lobo Marinho para tirar a foto. Eu também tiro uma foto com o Lobo e a gente continua andando pelo porto apinhado de gente – turistas.

De repente eu paro e fico olhando pro horizonte. Quando o Nego percebe que estou olhando uma embarcação militar, ele fala: “esse é o próximo passo hein?”. O Nego também tem vontade de fazer uma viagem por mar.

A Prima quer comprar escabeche, então a gente segue em direção aos restaurantes. Um homem toca uma tarantela em seu acordeom e não consigo deixar de observá-lo. Adoro acordeom, e adoro tarantela. No restaurante a Prima e o Nego degustam um pouco de escabeche com torrada e a Prima, atenciosa, me dá um pedaço da torrada.

De lá seguimos para a loja onde a Prima compra os cachemires para revendê-los. Feita a compra, decidimos almoçar. Perto da estação de trem nós comemos – os três – duas pizzas grandes, deliciosas – de queijo, claro. De barriga cheia nos dirigimos à estação onde compramos as passagens de volta (pra hoje à noite) e guardamos as malas com cachemires para podermos andar pela cidade.

Nosso primeiro destino é a Catedral Mar del Plata que, segundo a Prima (estudante de Turismo em Buenos Aires), tem muita influência do estilo gótico em sua arquitetura. Cruzamos a praça (linda, arborizada, com caminhos calçados riscando a grama) que antecede a Catedral, onde acontece uma feira de artesanatos.

Entramos na Catedral e, antes de olhar os detalhes de seu interior eu me ajoelho naqueles bancos de madeira forte, maciça, cuja parte traseira é própria para isso, fecho os olhos e começo a rezar:

- Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém.

Deus, muito obrigado. Muito obrigado por este dia maravilhoso, por esta viagem maravilhosa e por essas pessoas maravilhosas que você coloca na minha vida. Muito obrigado por todos aqueles que estão ao meu redor, por todas as pessoas que fizeram, fazem e farão parte da minha vida.

Muito obrigado pela proteção e pela orientação que você me dá todos os dias. Muito obrigado por me trazer até aqui – no começo do ano eu pedi orientação e isso é exatamente o que você tem me dado. Muito obrigado. Por favor, continue me iluminando, para que eu possa encontrar e seguir o meu caminho. Dê-me força para que eu possa cada vez mais aprender e fazer-me, além de forte, sábio e corajoso.

Que eu possa cumprir minha missão na terra. Que eu possa transmitir um pouco dessa felicidade que você me proporciona. Que eu consiga doar-me e que outras pessoas o façam junto comigo, e descubram junto comigo o prazer de fazer o bem.

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Abro meus olhos e vejo a Prima me encarando. Seu rosto tem uma expressão de júbilo. Ela me pergunta:

- Você gosta de rezar?

- Sim – respondo – principalmente em igrejas católicas. Mas isso não quer dizer que eu seja católico. Apenas me sinto bem. Esse ambiente, com essas imagens e essa música de silêncio faz com que eu me sinta mais próximo de Deus, ainda que eu saiba que Ele está dentro de cada um de nós.

- Você não tem cara de quem acredita em Deus...

- Pois eu acredito. Em Deus. Não acredito na religião, em nenhuma das que conheço.

- Por quê?

- A religião é criação do homem e como quase toda (senão todas) criação do homem, repleta de equívocos. O primeiro deles é dizer que a religião A é melhor que a religião B. Veja, das religiões que eu conheço, todas pregam as mesmas coisas – nenhuma diz para fazermos mal aos nossos semelhantes, então por que uma haveria de ser melhor que a outra?

Acontece que o ser humano é um animal de hábitos. Se adquirirmos o hábito de segregar alguma coisa, fatalmente esse hábito se estende as outras áreas de nossa vida. Quando adquirimos o hábito de segregar as pessoas pela religião que elas seguem, acabamos por segregar aqueles que são de etnias diferentes, classes sociais diferentes, opção sexual diferente, cidade, estado ou país diferente e daí por diante. Isso acontece, na maioria das vezes, de forma inconsciente e sem nenhum questionamento.

Outro ponto: não penso que a religião ensine; penso que ela adestra as pessoas. Qual a diferença de dizer pra uma criança “falte à escola e irá direto pro inferno sentar no colo do capeta” e de bater num filhote de cachorro quando ele faz xixi no lugar errado? Nenhuma. Ambos, por instinto e não por clareza, irão deixar de repetir o erro – por puro medo.

Até posso admitir que esse modelo fosse necessário na Idade Média, época em que o desenvolvimento intelectual humano em grande escala era praticamente impossível, mas não hoje. A religião está obsoleta e já faz tempo.

Não nego que as religiões têm alguns aspectos positivos, mas por que se contentar com algo que pode melhorar?

- Eu tive uma criação evangélica – diz a Prima – e nunca tinha visto as coisas dessa forma...

- Mas isso é só um ponto de vista um tanto pessoal – digo dando de ombros.

Olho pra traz e noto que o Nego já não reza mais. Nós três nos levantamos, damos uma volta pelo interior da Catedral e saímos, para continuar caminhando. Como o dia está, agora, mais bonito do que estava de manhã, decidimos voltar à praia para apreciar a vista do mar.

De fato o dia está muito lindo agora. O céu está tão limpo e azul que, no horizonte, parece se fundir com o mar e dá a impressão de que tudo é uma coisa só. O mar está calmo. O sol está quentinho, sem arder. As gaivotas cantam. O cenário está simplesmente perfeito.

A gente senta numa mureta do calçadão da orla da praia. Em algum lugar aqui perto tem alguma coisa – talvez um carro – com o som ligado, tocando salsa. Eu não sei dançar salsa. Assim mesmo eu tiro a Prima pra dançar, e peço: “me ensina?”. Uma sombra de dúvida rapidamente surge (“nunca dancei no meio da rua”, ela diz) e desaparece no rosto da Prima. Ela se levanta e nós começamos a dançar.

Eu passo o braço esquerdo pela cintura da Prima que, por sua vez, passa seu braço direito pelo meu pescoço. As outras mãos se tocam. Nossos quadris se tocam. Nossas coxas se tocam. Chego minha boca bem pertinho do ouvido dela e falo:

- Não me sinto tão feliz assim há muito tempo. Muito obrigado.

6 comentários:

  1. Cara, fantástico...
    Não sabia desse seu "DOM" de escrever tão bem, vou seguir freqüentemente seus posts.

    Grande Abraço e Parabéns!!!

    Bruno.

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  2. Belíssima! Podemos chamar de uma crônica hirper-surealista. Só faltou as fotos das narrativas - fica como sugestão - Parabéns; seus pensamentos desvela uma sensibilidade que transcende. Boa Sorte!

    Att. Leonardo Souzza.

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  3. Belíssima! Podemos chamar de uma crônica hirper-surealista. Só faltou as fotos das narrativas - fica como sugestão - Parabéns; seus pensamentos desvela uma sensibilidade que transcende. Boa Sorte!

    Att. Leonardo Souzza.

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  4. Eh vc consegue nos transportar para dentro da história. Fantástico isso. Muito raro nos autores esse talento de fazer o leitor querer ser parte do enredo.
    parábens
    bjs
    MarceloPai

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  5. É isso ai! Faltou mesmo a foto, ou a cerejinha do bolo, pra nos mostrar por exemplo que raio é um escabeche :-). Acho q as fotos vao dar uma vida a mais pros seus textos, por exemplo uma do trem quando você estiver viajando, etc.

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