terça-feira, 23 de novembro de 2010

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Mar de Plata, Argentina, 06 de novembro de 2010.

A estação é, talvez, tão antiga quanto o próprio trem. As colunas e treliças que sustentam o telhado são de ferro adornado e se parecem muito com o que se pode ver na estação de trem de Bournemouth (cidade litorânea do sul da Inglaterra) e na Estação da Luz (São Paulo, SP – Brasil). Assim como no Brasil, a malha ferroviária Argentina foi construída com envolvimento Inglês.

Ainda não amanheceu, mas no horizonte já é visível uma faixa clara riscando o céu. Sopra um vento muito gelado, o que não me deixa outra opção: eu tiro minha blusa (um cachemir que ganhei do Nego antes de ir pra Londres) e dou para a Prima vestir, pois ela esqueceu de trazer algo para se aquecer.

Andamos alguns poucos metros e uma senhora idosa me pede para ajudar seu marido (idoso também) a descer do vagão. Logo eu e mais dois homens formamos uma pequena equipe e juntos, com algum esforço, auxiliamos o senhor idoso (e um tanto obeso) a descer do vagão. Sua esposa nos agradece, emocionada com a força de vontade do marido em seguir viajando mesmo tão debilitado, e nós seguimos andando. Nesse instante me sinto feliz por ter começado cedo – as pessoas pensam que antes de viver a vida é necessário ter uma carreira, se preparar pra velhice. Que Deus tenha piedade de mim se elas estiverem certas.

Ao sair da estação damos de cara com um Café e eu, de imediato, falo:

- Hey, pelo amor de Deus, vamos tomar um café! Já faz quase uma semana que eu não tomo um café!

- Tudo bem – responde a Prima.

O local também parece muito antigo – a verdade é que sinto-me viajando no tempo. As paredes já foram brancas, mas hoje, devido à sujeira, têm um aspecto acinzentado. Os móveis são de madeira robusta – antigos – e no centro do salão uma lata grande cortada ao meio, repleta de madeira em brasa, serve de aquecedor para o ambiente. Nós nos sentamos, passam alguns minutos um e homem vem nos atender. Eu peço café preto e a Prima “una lágrima”. O Nego não pede nada.

Dou uma olhada no ambiente e vejo que, além de nós três, há apenas uma mulher sentada numa mesa do outro lado do salão, assistindo à televisão que faz fofocas sobre a vida das celebridades.

Passa mais algum tempo (um tanto longo, aliás) e nós somos servidos.

Eu nunca tomei um café tão ruim. Fraco. Sem açúcar. Frio.

A Prima oferece o dela para que eu experimente. “Una lágrima” é uma forma popular de pedir café com leite aqui na Argentina, com pouco café e muito leite. Não é exatamente o que eu chamo de beber café, mas está mais agradável que o meu. Assim mesmo eu tomo minha xícara de café até o fim – deixando bem claro minha decepção.

A Prima pede a conta e vai ao banheiro lavar o rosto. A conta vem rápido. Pago a conta e a Prima chega em seguida. Falo pra ela esperar um pouco, pois eu e o Nego também precisamos lavar o rosto.

Essa viagem à Mar del Plata é idéia da Prima. É aqui que ela compra as mercadorias que vende em sua loja que fica na rua Florida, em Buenos Aires. Como ainda é muito cedo para fazer compras nós decidimos andar pela cidade.

Ainda está muito frio e para piorar começa a garoar. Falo pra Prima que tenho vontade de conhecer a praia e nos dirigimos pra lá. A praia é feia. Tem a areia preta e suja. Mesmo assim eu tiro meu sapato (que me aperta muito os calos) e vou pro mar. O Nego me acompanha. Cinco segundos é o máximo que eu consigo suportar com os pés n’água – ela está muito gelada. O Nego nem se arrisca.

Voltamos pro calçadão onde a Prima está conversando com um homem que, pela aparência, vive nas ruas de Mar del Plata. A Prima tem essa coisa de conversar com todo mundo – talvez seja isso que a protege. O homem nos adverte: andar por ali não é muito seguro aquela hora da manhã, principalmente por estarmos levando um violão, algo que pode chamar a atenção dos ladrões.

Eu lavo meus pés (cheios de areia) numa poça d’água, coloco meu sapato apertado, a Prima se despede do homem de rua e nós continuamos caminhando. Poucos metros à frente um homem numa bicicleta nos aborda vendendo café. A Prima compra, e dessa vez ela pede “trés lágrimas” – nem eu nem o Nego temos vontade de arriscar outro café preto. Enquanto a gente toma nosso café o velho homem nos adverte sobre o perigo de andar por ali aquela hora e nos conta (mostrando a cicatriz) de quando reagiu a um assalto e levou uma facada na mão.

Quando o homem se despede a Prima se levanta e fala: “vamos?” Eu reclamo, falo que não tenho mais condições de andar com aquele sapato apertado. O Nego, nesse momento, tem uma idéia genial. Ele calça meu sapato (um pouco maior que seu pé) e eu calço sua sandália do tipo Papete, deixando os ajustes no máximo para caber no meu pé. Ele salvou meu dia.

Agora que o sol já está visível e que parou de garoar eu não sinto mais tanto frio. Nós estamos caminhando em direção ao porto e essa parte da cidade é muito linda. De um lado o mar, e do outro, jardins cuidadosamente projetados e cuidados, casinhas no estilo europeu onde funcionam restaurantes e hotéis luxuosos – coisa pra inglês (e todo tipo de turista) ver. Jogando conversa fora eu falo pra Prima que sou vegetariano e ela faz a pergunta previsível:

- Por que você é vegetariano?

- Vixi, a história é um tanto longa... – respondo tentando me desviar do assunto.

- Pois nós temos o dia todo pra ouvir, não é Emerson? – a Prima não desiste fácil, e como se isso não bastasse procura reforço.

- Sim. – responde o Nego, dando o apoio que a Prima desejava.

Eu me vejo sem muitas opções e começo a falar.

- Alguns amigos meus se tornaram vegetarianos. Eu sempre tive vontade de virar, mas nunca vi um bom motivo para fazê-lo. E eu sempre preciso de um bom motivo para fazer alguma coisa. Andei lendo sobre o assunto, mas não encontrei o bom motivo nas leituras. Eu poderia dizer que deixei de comer carne porque desejo ter uma alimentação mais saudável, mas isso não seria verdade. Eu poderia dizer que deixei de comer carne porque acredito que a ração gasta com os animais poderia acabar com a fome na África, mas isso não seria verdade. Eu poderia dizer que deixei de comer carne porque me preocupo com os gases bovinos lançados na atmosfera que contribuem para o agravamento do efeito-estufa, mas não seria verdade. Eu poderia dizer que deixei de comer carne porque me preocupo com o desmatamento feito para criar pastos, mas não seria verdade. Eu poderia dizer que deixei de comer carne porque tenho compaixão pelos animais, mas isso não seria verdade (ainda que tenha entendido a importância da compaixão por eles depois de virar vegetariano).

A verdade é que virei vegetariano para fazer uma espécie de auto-treinamento. Mudar a dieta, tirar a carne do cardápio é um desafio considerável, sobretudo resistir à tentação quando as pessoas oferecem carne, ou quando o cheiro maravilhoso de um bife sendo frito ou uma linguiça sendo assada entra pelas narinas sem pedir licença, ou ainda quando bate aquela vontade de comer uma coxinha ou uma pizza de calabresa. Resistir à tentação é a parte que mais me interessa, pois tenho vontade de trabalhar para as pessoas algum dia e, quando esse dia chegar, resistir às tentações será importante.

Paro de falar e a Prima e o Nego ficam um tempo calados. Eu fico sem graça. Não gosto de falar sobre o que penso. Ainda tenho receio, talvez até vergonha. Escolhemos um lugar para nos sentarmos um pouco, em frente ao mar, e descansar. O Nego fica um pouco longe, com o olhar perdido no horizonte. A Prima me beija e se aninha no meu peito. Ela murmura:

- Gosto de ouvir você falar. Você tem muito a dizer.

A gente descansa um pouco para logo depois continuar nossa caminhada.

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