segunda-feira, 29 de novembro de 2010

008

Buenos Aires, Argentina, 07 de novembro de 2010.

- ...Partido de La Matanza.

- Partido de La Matanza?!

- Y sim, Partido de La Matanza!

- Nossa! Que nome estranho para uma cidade...

- Y sim, também acho. Igual, a cidade tem esse nome porque antes havia muitos matadouros lá.

- Matadouros? De gado?

- Sim.

- É, estranho. Imagine eu falando algo pra minha mãe como: “...não mãe, a Prima não mora em Buenos Aires. Ela mora em uma cidade vizinha, tipo Osasco ou Diadema, chamada Partido de La Matanza...”

- Hahahaha! Y sim, o nome é bem estranho...

Estamos a esperando o ônibus - hoje vou conhecer a casa da Prima. Por ser domingo à noite está demorando muito. A “Plaza Constitución” me parece um lugar um tanto perigoso e por isso fico alerta. Alguns garotos de rua estão borboletando em volta dos transeuntes e isso não é bom.

Há, Na Plaza Constitución, um terminal de ônibus metropolitano, uma estação de metrô e uma estação de trem (no estilo europeu, com um amplo saguão de espera e várias plataformas) de onde saem os trens para longas viagens. Foi nessa estação que tomei o trem para Mar Del Plata.

- Igual, lá é um lugar bem pobre hein? Não é como esses lugares que você está acostumado...

- A Prima, deixa disso! Pra mim isso não faz a menor diferença! E depois, eu nunca morei em lugares ricos...

- Y sim, mas agora está bem no centro de Buenos Aires, na parte boa da cidade...

Interrompemos a conversa, pois um senhor idoso começa a correr seguido por um garoto de rua, que traz uma garrafa de cerveja na mão. O garoto alcança o senhor e o ameaça com a garrafa. O senhor resiste ao assalto, se afasta um pouco e o garoto lhe arremessa a garrafa, que o atinge, em cheio, nas costas.

- Ró, não fica olhando...

O senhor pega a garrafa no chão – inteira – e arremessa contra o garoto, que corre e se desvia. A garrafa se espatifa no chão, com um estardalhaço que chama a atenção das pessoas que estão na rua.

O medo é foda. Nos inibe. Paralisa. Nos faz hipócritas. Egoístas. Nada faço para ajudar o senhor assaltado. Fico aqui, acompanhando a cena como se estivesse sentado na frente da televisão, assistindo um filme. Acompanho a cena como se não fosse parte dela.

O sentimento de impotência também é do caralho. Às vezes penso que seria melhor não ver o que vejo. Talvez seja por isso que Deus proibiu o fruto do conhecimento. De que adianta ter consciência de toda essa podridão se não há algo que eu possa fazer? Estou encarando os meninos de rua e tenho tanta compaixão por eles – os agressores – quanto tenho pelo senhor – o agredido. Todos são vítimas.

Imagino como é a cabeça de uma criança dessas, que desde cedo é ensinada a roubar, agredir, talvez até matar, para sobreviver. Elas não estão nessa vida por querer – e quem poderia escolher viver assim, se tivesse escolha? Eu concordo que todas as pessoas têm as mesmas capacidades para vencer na vida. O que faz a diferença é a consciência disso. Os vencedores o são porque, antes de mais nada, têm plena convicção de que são capazes de vencer. Têm fé – senão em Deus, em si próprios. Quem vive na miséria o faz porque acredita que não é capaz de sair dela. Esse detalhe muda tudo.

- Ró, não olha...

A Prima está preocupada, mas eu não consigo deixar de acompanhar os acontecimentos. O senhor entra na estação de trem e volta com um policial, mas os meninos de rua não estão mais por aqui e com eles também se foi a tensão do momento.

- Aqui é bem perigoso essa hora, né? – a Prima puxa assunto com um homem que também espera o ônibus.

- Aqui é perigoso o dia todo – responde o homem.

A Argentina não é muito diferente do Brasil.

Nosso ônibus (finalmente) chega e nós embarcamos. Enquanto seguimos viagem o cenário vai mudando gradativamente. Os edifícios majestosos, as estátuas imponentes dos heróis argentinos e as bandeiras orgulhosamente hasteadas ficam para traz e o país verdadeiro começa a surgir.

A viagem é um tanto longa – algo em torno de uma hora e meia – e nós vamos em pé. A Prima vai me contando um pouco da sua história, misturando o português com o espanhol – ela já está aqui há tanto tempo (e sem muito contato com o português) que isso é inevitável.

Chegamos. Descemos do ônibus num lugar bem diferente do centro de Buenos Aires. As casas são de alvenaria, porém ainda estão inacabadas. Há muito lixo na rua e este disputa espaço com o mato que cresce em toda brecha que encontra no asfalto – e não são poucas. Pouco mesmo é a parte asfaltada, que depois de alguns metros acaba.

Passamos por um “restaurante” de comida típica do Peru e me pergunto “por que diabos há um restaurante nesse lugar? Vão vender pra quem?” e logo me respondo “talvez haja muitos peruanos nesse bairro. Talvez os peruanos aqui sejam como os nordestinos em São Paulo”.

Enquanto caminhamos pelas ruas de terra, tomando cuidado com algumas poças d’água que me parecem eternas, e com um córrego que aparece e some misteriosamente, a Prima comenta:

- É impossível caminhar por aqui quando chove.

- Eu imagino...

De fato, a única diferença entre esse lugar e a periferia de São Paulo é que aqui o terreno é plano, ao passo que em São Paulo há muito morro. A pobreza, porém, é parecidíssima.

- Igual, eu te avisei que isso aqui se parece com aquele filme, Cidade de Deus...

- E qual o problema?

- Y não sei, por aí você não está acostumado com um lugar feio desses...

- Nada que ver – falo, imitando a forma da Prima de falar, pois ela já não pensa mais em português. Ela agora pensa em espanhol e traduz para o português, como fazemos todos ao começar a falar uma língua estrangeira: pensamos em nossa língua materna e traduzimos para a língua em questão, e por isso mesmo algumas vezes não somos compreendidos, pois não podemos traduzir o significado das coisas. Exemplo: um cara de pau, em inglês, não é um “wood face”.

- Em São Paulo também há muitos lugares assim – continuo – e eu tampouco me incomodo com a feiúra pela feiúra. O que me incomoda é que ainda haja lugares assim no mundo, com tanto avanço que conquistamos como seres humanos. Te digo mais: pra mim, conhecer um país não é passear pelo quadro que pintam para os turistas, e sim ver como cuidam de seu povo – e, em alguns casos, de outros povos também.

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